31.12.07

POÉTICA

99

o ano tinha passado
- mais um ano tinha passado
99 nove velhinhas, contou

quando não acordou
havia uma a menos



parque eólico

geradores de energia
ou cataventos gigantes?


para entender o poeta

escreve o corpo
transforma em alma

24.12.07

LÁGRIMAS

Deu pra ele? Não tinha dado nem pensado em qualquer coisa do gênero. A mão não passou da cintura, a idéia não passou pela cabeça. Tudo exatamente como há anos atrás quando éramos algo ainda um para o outro – se é que fomos - como se o que vivemos tivesse valido a pena. Valeu? Talvez fosse a cerveja, talvez nem fosse eu e nem ele era, mas o fato é que foi feito e agora sobrava o gosto do arrependimento, o olho desviando a resposta, a mente formulando uma verdade sutil de ser dita, que não soasse a desculpa – não tinha desculpa, eu bem sabia, melhor era apenas dizer que tinha acontecido, mas que nem tudo tinha acontecido.

Vejo a pupila dele dilatar, tem um brilho no fundo que finge não importar, mas ele se importa e cala, como sempre calou. Me dá um beijo manso pra passar a sensação de que não vai mudar nada, mas eu sei que sempre muda. Vai no banheiro e demora, deve ficar pensando no sentimento que não sinto. Eu não penso, não consigo mais pensar. Ele volta e abraça, abraço também. Ficamos em silêncio pensando no outro, ele pensando num gosto de traição que não existiu, eu tentando não lembrar que foi ruim, como sempre era ruim lembrar do que não se quer.

As lágrimas apostam corrida até o chão.

17.12.07

VOAR

Por saber que o sentimento era tanto e quase real, aprendemos a ser livres como nunca seríamos – nunca fomos ou soubemos ser, antes da certeza de que aquilo pertencia a nós tanto quanto nossos corpos nos pertenciam. Acreditando no que não tínhamos provas só provávamos que sabíamos viver essas coisas abstratas que nunca entendemos. E os outros olhavam-nos desconfiados, que nunca entenderiam o sentido da nossa ligação – éramos jovens, éramos sãos; mesmo assim não nos compreendiam.

Os outros estavam trancados e não havia coisa alguma que fizéssemos para que fossem libertos, pois nem queriam liberdade, que a prisão em que viviam era para eles segurança e estabilidade, sinônimo de vidas rasas e estanques. Fingimos saudades da época em que não éramos e vivíamos assim como todos, suportando o que acreditávamos ser suportável e andando com o rebanho manso em direção a um futuro morno.

Criamos uma fogueira com todas as vaidades das quais nos despimos e fizemos exalar o cheio convidativo da vida pela cidade afora, tentando arrecadar mais alguma alma que se dispusesse a tentar voar conosco, seguindo alguma estrela perdida no céu, que pudesse guiar melhor nossos olhos e fizesse deixar de pensar. Largamos idéias e ideais que cultivamos tanto tempo em vão e tornamo-nos leves - o corpo perdendo a densidade, a gravidade esquecendo de agir, o vento brincando de deus, conduzindo-nos como pequenos objetos sem vida.

Rimos um sorriso cúmplice, de quem acredita no que ninguém acreditou e descobre estar certo. Nosso segredo eterno ditava que voar era tão simples e teimávamos em segurar ao chão, prender-nos à corda, não ser, fingíamos ser dom dos pássaros, sem saber que sempre tivemos asas. E aquele sorriso duplo e verdadeiro que saiu do chão como nós e entregou-se às asas do tempo, sem preocupar-se com tempestades ou secas, fez-se música.


E ecoamos.

10.12.07

LEAD*

Quando cheguei, ela estava de malas prontas e maquiagem borrada. Fui buscar uma cerveja na cozinha - se pedisse para ela ficar seria pior. Fechou a porta com uma batida forte, para que eu ouvisse que ela tinha ido embora. Mas era como cachorro manso, voltava sempre pra casa um dia, chorando mais do que quando partira.

E deslanchava, ainda chorando aquele choro infantil que as mulheres teimam em conservar mesmo quando adultas. Contava entre soluços, mil o quês, quems, quandos, ondes e comos que não me pertenciam. Faltava para ela os porquês, que nenhum de nós dois ousava adivinhar. Mas nem tudo na vida tem seu lead definido. E ficamos sem porquês, sobrevoando em torno de nossas dúvidas e da confusão que reinava nela.

Mas agora o relógio girava vezes contínuas, e mais de vinte voltas os ponteiros completaram, brincando ao redor da circunferência pontual, e ela não havia aparecido. Não houve vestígio dos passos silenciosos na sala ou da voz suave que me acordava durante madrugadas aflitas para que matasse um inseto qualquer que teimasse em nos visitar.

Agora os porquês pareciam cada vez mais distantes - faziam falta. Talvez ela fizesse falta e a sua manifestação mais óbvia fosse a necessidade que sempre tivemos de não comentar os porquês. Uma vontade incessante de nunca entender o contexto, não chegar ao resultado final - teimávamos em ser supérfluos. Era o lead inteiro agora que faltava e me deixava sem norte e fazia fraco e umedecia a alma de forma que não entenderei.

A energia que envolvia agora era um misto de nada que eu era incapaz de entender, pois sempre fora incapaz de entender tudo até que ela chegava com seus o quês, quems, quandos, ondes e comos.

Agora, eu era sem lead e sem ela. Notícia, sem informação.




* pra quem passou longe de alguma aula de teoria do jornalismo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lead

3.12.07

DEJAVU

Outra vez a mesma língua. Gosto azedo de passado reciclado. As mesmas palavras cheias de curvas para eu me perder. O mesmo carinho insensível que sempre me presentearam aquelas mãos. Os mesmos talvez, sims e nãos. Um dejavuè de sentimento que fingiu que acabou.

Burra. Diz que gosta agora. Diz de novo aquele milhão de carinho vomitado. Diz. Diz que ficou mal e vai ficar de novo, essa e todas outras vezes que quiser lembrar. Diz que chorou, ligou pra mãe, faltou o trabalho.

Admite que quer ser feliz pra sempre. Aceita que tem medo do futuro. Que sonha com um casal de gêmeos morenos de olhos azuis. Fala dos outros tantos corpos ocos que o substituíram nesses anos. Fala do abutre persistente que ele sempre foi em tua vida. Fala da carne, da carniça. Fala dos podres, do cheiro invasivo das mentiras.

Não, não fala nada. Não chora de novo. Não pede pra voltar. Finge que nem quer. Ensurdece esse teu olhar-paixão. Cala. Deixa o silêncio berrar nas paredes mofadas. Abstrai as traições, os traumas, os tapas. Pára com a auto-tortura que a ferida ainda brinca de sangrar. Esquece os bons momentos. Lembra todos os tormentos que foi capaz de aceitar.

Amacia. Beija o desgosto daqueles lábios imundos de saudade. Abraça o corpo que logo te larga. E cospe.

26.11.07

OS FATOS

Desde aquele dia, nunca mais tocamos no assunto. Criamos uma cumplicidade que nos envolvia e nos fazia quietos, criando uma neblina de confiança desconfiada entre nós. Olhávamos e sentíamos que tudo devia ficar apenas na memória, sem nenhum comentário que fizesse alusão.

Mas foi tanto que o fato cresceu no meio do silêncio de ambos e passou a andar de mãos dadas com nossa amizade. E, por mais que o tempo passasse, vez por outra eu encontrava em sua retina a memória daquele segredo a me fitar duvidosa, sobre eu ser quem sempre fui ou ser outra pessoa simplesmente pelo que fui.

Ele levava consigo – nos braços e no olhar – a serenidade revolta de quem sabe demais. Eu guardava um quê de melancolia inquieta, com que se tivesse medo de algum dia ele tocar no assunto. E o fato de o dia não chegar, mais angustiava do trazia calma, pois eu sequer sabia do quanto ele sabia.

E com o tempo eu parecia deixando os fatos cada vez em um canto mais afastado da memória e só o que lembrava é que ele sabia mais do que eu. Ele, por sua vez, foi lembrando cada vez mais e houve um tempo em que vi que a lembrança não lhe saía da face, como se me acusasse de algo que eu já não conseguia entender o que era.

Mas um dia passamos horas juntos. Eu, ele e os fatos. Soubemos tanto e falamos mais do que havíamos falado durante todo o resto do tempo em que soubemos de tudo. Ressabiados, descobrimos aos poucos que o que sabíamos não era nada - esse seria nosso novo segredo.

19.11.07

PUTAS

Segundo o Renan, a Lindalva era só mais uma puta por quem eu tinha me apaixonado, o que explicava ele estar me levando para um puteiro. Mas, segundo o Renan, todas as mulheres eram putas, principalmente aquelas por quem eu me apaixonava. Por isso era mais prático gastar cinqüenta reais num puteiro, do que levar mulher para jantar, pagar motel, ligar no dia seguinte - as putas não queriam que ele ligasse.

"elas fazem de tudo, tem que ver!"
(BRAGA, Renan)
O lugar tinha o cheiro que as doenças venéreas devem ter e era recheado de loiras cujos cabelos brilhavam na luz negra - única iluminação da casa. Sentei numa cadeira de estofado de couro vermelho - rasgado - e pedi um drinque, para entrar no clima. Uma das loiras pôs o salto do sapato - branco, plataforma, 20 centímetros - levemente sobre meu sexo e começou a dançar uma espécie de dança do ventre improvisada e decadente - pseudo-sensual.

O estômago embrulhou. Elas prostituíam as almas e os corpos com um desapego invejável. Pensei na Lindalva e no seu excesso de apego, nas doze ligações diárias. A Lindalva era só mais uma puta, devia ouvir o Renan. Busquei o telefone no bolso dianteiro da calça, puxei o número da memória – tinha apagado do celular.

“Lindalva, vem me buscar que eu estou odiando.”
(MESMO, eu)
Eu não queria que ela entendesse e nem pretendia explicar o porquê de eu estar num puteiro, quando tinha mentido que estava visitando minha mãe no hospital. Mas eu não queria estar lá, e me parecia uma boa justificativa – eu estava errado.

Saldo da noite foi zero Lindalvas, uma puta e doze uísques paraguaios. Só sobrou o gosto azedo de deixar princípios para trás. Mas afinal, eram todas putas mesmo, não faria diferença.

12.11.07

ADULTOS

Embriagou-se de felicidade ao ouvir as palavras inseguras que saíam lentamente, deslizando pela laringe, brincando às voltas da garganta, escorregando pela língua e, finalmente, jorrando da boca dele. Já havia perdido a conta do número de paixões que lhe haviam consumido, tirando o sono, secando a boca e acelerando o coração. O professor de história, o amigo do irmão, o primo mais velho, o menino do segundo grau. Tantos que não lembrava mais. Todas paixões platônicas aquelas, tão sem graça agora diante do menino imberbe e tímido dizendo que gostava dela.

Separou num canto do seu eu mais escondido um espaço para o que tinha para lhe dizer: guardava o papel de bala que ele tinha lhe dado tempos atrás, tinha fotos dele espalhadas pelo quarto, chorava ao ver novela, queria dizer que amava. Segurou-se. Era uma menina, a mãe tinha lhe ensinado a não ser tão fácil com esses meninos. Sorriu e deu um beijo estalado na bochecha dele, que fez barulho e o barulho transformou-se num tom róseo que migrou para o rosto dos dois.

Após o beijo, saiu alegre-envergonhada, saltitando como se tivesse ganhado um brinquedo que muito esperava. Mas não queria mais brinquedo. Agora tinha um namorado, não era mais dessas crianças aí, que só querem saber de brincar de bonecas ou jogar videogame. Era uma pré-adolescente, com 6 anos já. A mãe teria que entender.

A mãe entendeu. Comprou vestido novo para ela se produzir não muito curto, não quero filha minha mostrando a bunda por aí, deixou usar maquiagem bem pouquinho, senão vai parecer um travesti. A filha estava virando uma mocinha, afinal. Mostrou alguns livros de anatomia humana, que ela não entendeu muito bem para que serviam, mas olhou atenta. Explicou coisas que a filha não deveria fazer – e ela chocou-se em saber que havia pessoas que faziam aquelas coisas horríveis.

No dia seguinte, na escola, ela - não mais embriagada com a felicidade que lhe cegara e fizera beijar o menino, a mesma que lhe carregara saltitante até em casa, que fizera comprar vestido e maquiagem – sorriu quieta e explicou para ele que os adultos eram seres muito complicados. E convidou para brincar de casinha.

5.11.07

ANUVIAR-SE

Foi subindo as escadas feitas de nuvens e outros sonhos que se desfaziam no ar. Pulou um, dois degraus. Não sabia o que encontraria lá em cima, mas continuava subindo, com a certeza de que nada de ruim subiria àquela altura e nada de ruim lhe alcançaria, mesmo que estivesse no chão.

No caminho, brindou vitórias e conquistas nunca realizadas, correu atrás da luz que brilhava no fim do túnel sem fim. Chorou lágrimas verdadeiras de sentimento barato. Desfez-se mil vezes até nunca chegar, mas reconstruiu-se logo, para continuar sua jornada pelos ladrilhos anuviados.

Riu e o riso fez-se estrada, e distribuiu alegria boba pelo caminho, que coloriu-se feito quarto de criança. Esqueceu dias e meses e anos, e nada podia enquadrá-la no tempo – não no tempo do relógio, tão simétrico, só no tempo das palavras, um tempo de idiossincrasias, do tipo que se conta em batimentos cardíacos ou respirações ofegantes.

Traiu a si mesma e aos seus princípios que ali nada valiam, ficaram presos no chão que havia deixado há tempos. Despiu-se de toda a moral, de toda a vergonha, deixou lá seus medos e angústias, vomitou inseguranças infantis que ainda a prendiam. E foi ficando leve como a escada nublada que lhe servia de base.

Esqueceu-se da carniça que ainda levava rente à alma. Aquele corpo podre cheio de vestígios de um passado que já havia passado. Nada mais de dor a acometia, só tinha o dançar leve de seus passos escalando a vida. E via tudo e ouvia bem e sentia o ar. Até que fundiu-se com as nuvens. E voou.

29.10.07

DA DELICADEZA DIÁRIA

Ao perguntarem se acreditava em almas gêmeas, o anjo respondeu que o problema mesmo era acreditar em almas. Não que fosse um desiludido. Longe disso! O anjo apaixonava-se ainda com o ardor com que se apaixonara há cinqüenta anos - e sempre e sempre.

Claro, há cinqüenta anos atrás tinha vinte, igualzinho à idade que tem hoje. Mas que culpa tinha de ser anjo? Era sorte mesmo, alguns morrem anjos, outros demônios.

Voltando às almas gêmeas. Ela olhou para ele com os olhinhos miúdos que tinha e ficou esperando resposta mais convincente, afinal, como é que um anjo não vai acreditar em almas? Não convive com elas todos os dias pra além do além? Ou será que o único passatempo que tinha era vagar por dentre os humanos a rir de sua mediocridade?

Sim, porque anjo não trabalha, não estuda, não se preocupa em ser perfeito porque nem quer. Ele podia só viver sua vida e brincar por aí. E era por isso que se apaixonava constantemente. Paixões eram o seu hobby predileto e o praticava com uma dedicação invejável. Prova disso era a mundana desiludida diante dele a esperar que respondesse à pergunta.

E era bonita e inteligente e engraçada e essas coisas todas que as pessoas tendem a ser quando apaixonadas. Mas apaixonar-se por um anjo é complicado, vocês bem sabem. Diz que demorou meses para averiguar que a história de que anjos não têm sexo é pura mentira.

E o anjo, depois do silêncio clerical que fizera, sorriu criança que era, beijou-lhe a face e, bem baixinho, no ouvido, lhe disse: “as almas, meu bem, mentem muito”. Esses seres do além, ela conta, tem a perigosa mania de fugir das respostas.

22.10.07

A PRANCHA

Tentei olhar no olho, mas o tapa olho tapava o único olho que minha visão conseguia atingir. Sem chances de implorar por perdão. Senti de novo a ponta da faca machucando as costas, já sangrava, eu sentia aquele calor gelado que nosso sangue tem escorrendo pela pele, misturado com medo de sangrar mais.

O pé ante pé cauteloso fazia a prancha ranger baixinho, estilo porta de filmes de terror. Mas isso não aterrorizava que era só trajeto do sofrimento maior. Eu queria me prender àquela prancha um pouquinho, pedir para a faca cortar mais as costas, pra ver se ficava cicatriz. Mas nem ia adiantar saber de cicatriz nas costas, que não enxergo elas. E a faca empurrava mais um pouco o corpo que acabava servindo de alicerce para os pés, já hesitantes, pois o fim da prancha estava próximo. Eu não queria ir, mas a cegueira pirata me empurrava cada vez mais rumo àquele inesperado catastrófico, e a cada passo a prancha diminuía mais – e parecia não ter fim aquele tormento que era atormentar-se com o que ainda não aconteceu.

Era o barulho do mar? Era o ranger da prancha? Era o escorrer do sangue, o arrepiar dos pêlos, a pele tocando essa mistura vertiginosa? Era o caolho atrás de mim, que não mostrava-se para confundir-me fazendo com que não pudesse ver o passado nem escolher o presente? A faca que podia me tirar a vida de uma forma bem menos indolor do que se ela fosse tirada aos poucos, anulando-me naquele mar de incertezas que eu nem via diante de mim? Era tudo que eu não era, pois naquele momento quem cegava era eu, independente de tapa-olho – eu cegava, pois não tinha escolha senão a escuridão que me fora ofertada ali, onde findava a prancha diminuta sob meus pés.

A faca empurrava mais, lembrava o tic-tac do relógio que eu não tinha, marcando o tempo que agora fazia-me falta. Eu queria a perna de pau, o olho de vidro, o papagaio no ombro. Mas meu pirata era falso, obsessivo. Só servia para guiar os prisioneiros na prancha delgada. O meu pirata não falava espanhol, nem saqueava navios, e nem sei se tinha pirata ou era só uma faca me empurrando para zombar de minha cara, eu só sentia o equilíbrio na prancha, o balanço da maré, que iria me levar para ser como todos aqueles seres marítimos, que só sobem à superfície para respirar.

Eu respiro o ar que falta aos pulmões. Logo, sou eles também. A única saudade que posso ter é da faca cortando as costas, do sentimento do sangue escorrendo no corpo, embrenhando-se entre pêlos. Aquela dor que enausea a gente, mostrando que ainda tem vida dentro daquele corpo sanguinolento. Mas o sangue não corre mais para fora do corpo. Nem por dentro.

15.10.07

ASAS

Os olhos de avental, ao meu redor, brincavam desconcertados com minhas asinhas. Pequenas. De penas amarelas como o sorriso de minha mãe ao ver-me. Mas mãe é mãe, e aos poucos o defeito ficou bonito. E apresentava-me já dizendo estar ansiosa para que eu começasse a voar, como quem se diz ansioso para que o filho ande.

E cresci ouvindo que voaria. Sonhava brincar com os pássaros. Disputar corridas aéreas. Furar as nuvens com meu corpinho alado. A janela do apartamento me mostrava uma infinidade de possibilidades que um dia eu concretizaria, numa decolagem qualquer.

Na escolinha, o que para os outros era uma fraqueza, para mim representava apenas a minha superioridade. Quantas daquelas crianças alçariam vôo algum dia? A única pena que elas conheciam era a pena delas mesmas, daqueles seus pezinhos tão fincados no chão. Limitados. Invejosos. No fundo sabiam que minha condição de menina-pássaro só me dava oportunidades que eles nunca teriam.

Mas eu crescia e as asinhas não. Exibiam por anos o mesmo tamanho que os médicos e enfermeiras constataram ser quase o mesmo de suas mãos. E como asas nanicas sustentariam um corpo humano? Um corpo humano que, embora não o fosse ainda, seria adulto um dia.

Foi no início da puberdade que as penas começaram a tomar conta do resto do meu corpo. Amarelinhas todas. Brotando devagar e silenciosamente. Uma aqui, outra ali, até que meu corpo estivesse tomado por elas, quando eu já contava com quase 15 anos de vida.

Sempre tive a certeza de que algum dia aquilo que era um apêndice, me levaria pelos ares, rindo das pessoas mornas cujas vidas se restringem a arrastar-se por aí, pisando o chão com seus pés medíocres. E o dia fazia hora. Enrolava-se no tempo que o tempo tem e me confundia para que eu achasse que ele estava sempre próximo, mas nunca ali.

Quando precisei procurar um emprego, minha aparência foi decisória. Não havia empregos, estágios, ou frilas para pessoas com o corpo coberto de penas. Ao menos não em lugares convencionais. Com uma pequena adaptação de meus empregadores, virei mascote da Sadia.

Humilhante talvez, mas não quando se tem a certeza de que nasceu para ser especial. E, como em uma escola para deficientes, a especialidade nunca me era útil. Eu nunca tirava proveito daquele monte de pena, e já sentia as transformações ósseas que meu corpo de pássaro passava. Aos poucos, os fortes ossos humanos transformavam-se em ossos pneumáticos.

Com 20 anos, vi que minha vida chegava ao fim. Meus dentes haviam caído e a boca fora substituída por um bico precário de ave. Meus pais já não falavam comigo, pois eram incapazes de entender os piados que eu emitia. Foi com a derradeira degradação que tomei a decisão mais importante de minha vida. Tal qual Dom Pedro, sabia que, para mim, só havia duas opções: independência ou morte.

Novamente era a janela do apartamento a me tentar, chamar-me para os ares com a sensualidade que só um pássaro imagina que as janelas possam ter. E assim, atirei-me ainda com a ilusão de poder voar, mesmo com minhas asinhas subdesenvolvidas a provar que nunca sustentariam uma pessoa de 20 anos.

Junto ao meu corpo estilhaçado no chão, estilhaçaram-se também todas as ilusões de uma vida falsa. Uma vida que viveu enganada com a possibilidade de vôos inimagináveis, que ficaram apenas na imaginação. Uma vida vivida pra ser voada, mas que nunca decolou.

8.10.07

MANUAL DE INSTRUÇÕES

Lindo, daquelas belezas antigas, pele e olhos claros, sorriso criança, cachinhos dourados no cabelo. Lindo do tipo que não me adiantava nada, estilo príncipe encantado que traz café na cama, liga para dizer boa noite e fala coisas bonitas oito vezes por minuto. Ele faz planos, tem carro, dinheiro e vida pela frente, nada do previsto no meu manual de instruções.

Choro, berro, grito, jogo o controle da TV na cara dele. Mas aquela perfeição falsa era totalmente inabalável, ele parecia não estar disposto a se enquadrar no meu estilo de vida sem ontem e amanhã. Já comprou a neosaldina quando me viu começar a beber, trouxe o casaco que esqueci de trazer e me levou até em casa para eu não me perder.

Ele proibia metodicamente todas as manifestações da inconseqüência à qual eu sempre fora tão apegada. Ele entendia todas as coisas que eu fazia, estudou sistematicamente os mecanismos do meu funcionamento, descobriu a lógica que nunca imaginei que pudesse existir por trás de mim.

Fui desvendada e humilhada de uma forma quase inocente, como uma criança descoberta em uma mentira. Precisei permanecer junto a ele, pois ele nunca havia reparado nos danos irreparáveis que causara em minha personalidade. Fiquei a seu lado para que ele nunca pudesse refletir sobre todas as descobertas que eram dele e só. O objeto de estudo: eu. Suportei saber que ele me conhecia tão bem, remediando-me com o fato de que eu jamais alcançaria tal grau de auto-conhecimento. Mas, de alguma forma, o fato de ser previsível incomodava-me. Planejei formas incontáveis de fugir desta previsibilidade que tanto me agredia, mas soube logo que o ato de planejar já me tornava comum, igual aos outros, sem surpresas.

Ele jamais esqueceria de sua descoberta mais incrível. Eu era o rato de laboratório que ele perseguia, através de beijos e carinhos, traçando metodicamente o manual de instruções no qual ele nunca esteve incluso, mas incluía-se assim, por traçá-lo e agora eu perdia completamente o controle de minha vida, que pertencia mais a ele do que a mim, eu jamais entenderia o que ele fizera com minha personalidade, de que forma eu havia sido anulada em poucos meses de convívio, reduzida a pequeno objeto de estudo científico, e essa relação de criador e criatura agora me perturbava mais, pois eu sequer sabia se eu já havia existido antes de ter sido realmente descoberta, como se fosse alguma lei da física ou algo assim. Eu tinha medo de um dia figurar toda minha previsibilidade em algum livro de ciências do segundo grau, distribuído gratuitamente nas escolas públicas da cidade, eu não queria mais ser isso que eu era ou que eu não era, pois negava-me a me descobrir no que eu havia sido descoberta.

Amei, amei mil anos sem amor algum, e com duração de tempo que não conto. Amei a prisão à qual eu estava submetida: ele, meu criador, descobridor, o cientista maluco que traçou todos meus ideais de vida antes mesmo que eu os tivesse vivido ou sequer idealizado. Eu era agora um mecanismo frágil, uma lei rara e óbvia, um computador cujas ações eram limitadas por um número pequeno de combinações possíveis de serem realizadas e funcionando segundo uma equação simples e pré-estabelecida à qual eu nunca teria acesso, eu não queria ter acesso à minha alma, à minha natureza sinistra e linear. Fui escrava de sua perfeição divina, a perfeição que ele calculou nas dimensões exatas para caber em minhas pequenas pretensões de vida e em meu manual resumido, traçado por ele.

Hoje, diploma, filhos e sorriso no rosto. Tento lembrar quem eu era, mas eu nunca soube. Só o que me inquieta é saber agora exatamente quem sou.

1.10.07

SER

Passaram 24, 48, 72 horas. O telefone não tocou. Espreguiçou o corpo abrindo os braços devagar, em ângulo reto com a cabeça, sentindo-se acordar suavemente, a vida do dia lhe invadindo o corpo e preparando suas funções vitais a continuarem sendo. Sabia com pesar que tudo ainda fazia sentido, embora quisesse estar triste - a tristeza, desdita, não vinha quando bem lhe queriam, era espontânea e agora mesmo que tão almejada, era incapaz de dar as caras, mostrar um sofrimento qualquer que fosse, para pintar bonito na tela e fazer ver aos outros que havia sido rejeitada. Incapaz. Só havia um sentimento leve tomando conta dela, como que um não saber, que ela tão bem sabia.

Foi então ao encontro da vida. Injetou café na boca ainda morna de manhã, e fez acordar-se à força. Comeu também um sanduíche, preparado às pressas, enquanto caminhava em direção à parada de ônibus, quase atrasada, mas ainda não. Sentiu o vento bater a cara como sempre bateu, mas agora lembrava que estava ali, inteira, confessadamente inteira. Fez sinal quando o farol se aproximou, mas não subiu no ônibus que parou. Desistiu, e pensou não trabalhar naquele dia nublado, ventoso. Quis ter desculpa, mas não tinha, então não ligou avisando que não iria. Também não havia motivos para voltar para casa, olhar TV, comer algo. Queria brincar de vida por alguns instantes para ver se, vivendo, era capaz também de ter disposição de não ser - como tanto queria.

Andou a esmo, até encontrar nada demais, como era previsível. Mas foi em lugar algum que parou e decidiu ficar, olhando o céu, com suas nuvens a dançar uma dança lenta e discreta, como bem cabia às nuvens dançarinas. E as nuvens faziam um espetáculo só para ela, ou só ela, na platéia inteira, havia gostado do espetáculo oferecido, mas é fato que tudo agora fazia sentido. E que entendia que aquela alegria serena, no lugar da tristeza que quis, não era farsa de espírito ou força de qualquer coisa. Era um balé sincrônico e lento, como a dança das nuvens, que lhe dizia apenas o que fazer, mas o porquê sempre dispensou, e só servia para continuar sendo. Como antes não quis.

24.9.07

POST IT

Post it colado no computador e a mesma indecisão tomando conta, como de hábito. Mas ligo – ela sabe que sempre vou ligar. Convida pra cinema, não quero. Jantar, também não. Aceito um chope, sem deixar que ela insista. E vão-se vários chopes, não só aquele combinado.

O jeito cult de riso solto cativa, mas não me deixa apaixonar, que por trás dos dentes brancos sei que tem um milhão de problemas. Esqueço os problemas que não quero para mim, e ela finge esquecer de novo, enquanto estamos juntos. Ela bebe mais que eu, de fato. É mais inteligente, e banco o intelectual pra impressionar, mas não impressiono. Está acostumada com caras assim, bem sei.

Dessa vez não conta da nova matéria no jornal, da exposição de fotos que vingou ou da viagem ao México, que fará semana que vem, como era de costume ouvir daquela boca que eu conhecia tão bem. Diz que vai se despedir, passar um mês longe, ou mais tempo. Não pergunto o porquê, ela também não diz. Pede que não espere voltar, mas sei que fala isso porque conhece minha rotina ridícula e sabe que a minha escolha é apenas esperar por ela or waiting for her – e meu inglês é ruim. Na dúvida, escolho todas as opções anteriores, e sei que faço a escolha certa, como nunca faço.

Chego em casa com a ressaca do desalento pulsando a mente, mas não sei. Não sei mesmo bem o que fazer, só fico ali olhando o quadro comprado no bazar da esquina, que não combina com o apartamento pintado de verde e sei que ela faz falta agora para criticar meu mau gosto e vai continuar fazendo falta como sempre fez em suas longas ausências.

Tomo o banho gelado que é o único disponibilizado por meu chuveiro estragado hoje. Ela vai e não sei para onde, não sei o porquê. Mas nunca me adiantou saber nada disso. Ela mudava de vida como quem troca de roupa e a única segurança que tinha era eu, esperando sempre no apartamento minúsculo, mais por solidão do que por gostar dela.

Mas o telefone toca e a voz de mulher do outro lado da linha não é a dela, como de costume. É alguma voz do passado, que eu sequer tinha lembrança, mas lembrou-se de mim. E ainda há espaço para outros chopes, talvez cinema e janta também, penso. Enfim, corto um pouco da única estabilidade que ela ainda tinha na vida, e decido brincar de ser outro, para fingir que sei não ser dela.

17.9.07

AQUELE ÁCIDO

Olhou e perguntou quem era, já sabendo que aquele ácido corrosivo e repugnante corria novamente pelo seu sangue. E deixou o ácido andar, devagar, tomando conta de todos os órgãos, numa metástase louca à qual já estava acostumado bem. Assim, totalmente consumido pelo tremor nas mãos, alucinado com o pulsar acelerado do coração, que lembrava tambores carnavalescos, em plena euforia, olhos estalados, não de cimento e ódio, mas de paixão.

Sorriu devagar que era, puxou-a pela mão e fingiu que dançava um tango, mas nem dançar sabia. Ela riu um riso solto, que ele provocara com a ousadia de ousar fingir dançar um tango. Constrangeu-se, mas pediu um martini seco e entregou-lhe na mão esquerda, como um presente inocente. Mas foram tantos martinis secos que convenceu-a a não rir mais dele, mas com ele, e foram juntos rir longe dali, em um lugar mais reservado.

E o ácido que lhe corria as veias misturava-se com o martini que corria nas dela, e juntos transformavam em um energia que ele já sentira outras vezes tantas, e mentira todas vezes que era a única, e agora mentia também que estava sentindo pela primeira vez o que sempre sentia. Ela, acostumada a ouvir o que sempre ouvia, inflou um pouco o ego e fingiu não acreditar, já acreditando e traçando planos para o futuro.

Mas o futuro também lhes corria as veias, que todo futuro um dia chega. E eles eram ali, como sempre fora para ele, e, para ela, que sempre acreditou, nada fazia sentido, posto que o futuro começou antes do presente acabar, mas o que veio não era o planejado por ela, e sim outro, que ele idealizou. Ao acordar, a cama estava vazia.

10.9.07

3 ATOS DE AMOR

ATO I - O INÍCIO

Ele disse que ia ligar, e ligou. Mesmo bêbado, não esqueceu o telefone - tinha anotado disfarçadamente no celular, sem nenhum nome, pois nem lembrava. Trocaram clichês e carícias incontáveis.


ATO II - O MEIO

Ela achou que dessa vez ia ser feliz para sempre, mas errou. Depois de um mês ele ensinou para ela o significado da palavra ciúme, e ela lhe demonstrou como os hormônios afetam o humor feminino. E, juntos, treinaram todo seu vocabulário de xingamentos e escatologias.


Ele aprendeu com ela a trair, e gostou. Enganavam a si e ao outro, para fingir que tudo era perfeito. E não desistiam de levar a vida juntos - e junto a outros. Faziam planos para o futuro já com a tristeza antecedente de pensar na companhia do outro.


ATO III – O FIM

Ela acostumou a chorar, e acabou. Sabiam que juntos tinham construído castelos de areia sobre as nuvens, e agora chutavam os grãos. Os porta retratos na sala traziam agora retratos de um passado que não queriam retratar. Enfim, veio o fim, para recomeçar.

3.9.07

RAÍZES

Desço as escadas correndo, puxo do pescoço o cartão ponto e passo na roleta, rumo à liberdade. Atravesso a porta apressado e sinto o vento de início de noite bater no rosto, enquanto puxo do bolso a carteira de cigarros. Constato que só tem mais um na carteira que jogo fora. Puxo também o isqueiro, do outro bolso, e acendo o cigarro. Fumo e me sinto mais livre, por ter a liberdade de poluir meus pulmões, em troca do tempo que passo com eles presos dentro do corpo e o corpo preso no trabalho e o trabalho preso nessa cadeia da sociedade atual, e me encho de filosofia e fumaça baratas.

São oito quadras até o restaurante onde ela me espera. Vou a pé, pois o carro estragou há três meses, e o salário não ajudou a pagar o conserto. Uma quadra, duas, e paro. A perna não obedece mais, não quer caminhar, teimosa. Insisto, puxo do chão, mas não levanta. Não tenho mais cigarros no bolso, para me acalmar, então não acalmo. Faço força, peço, imploro até, mas o músculo não quer saber, finca não chão e teima em não sair do lugar. Peço ajuda da outra perna – a esquerda sempre fora mais simpática – suplico que as mãos me dêem uma força. Mas nada adianta. A perna não sai do lugar. Resolveu se aposentar, de uma hora para a outra, e não tem súplica que consiga dissuadi-la da idéia.

Acalmo, após duas horas, que é o que resta, mesmo sem cigarros. Ligo pra ela, mas não atende o celular. E se eu dissesse que a perna não obedece e por isso não iríamos sair mais, acho difícil de ela aceitar. Nunca ia querer um homem cuja perna direita se aposentou. Ninguém iria, por sinal. Me contento e durmo, em pé ainda.

Acordo com o João ligando, pra marcar o futebol, na quarta-feira. Não vou, a perna direita não presta mais. Ele insiste, acha que é desculpa. A perna não mexe, impossível. Explico tudo, até que ele se convence, e combina de ir levar alguma coisa para eu comer, porque o estômago ronca. Peço cigarros também. Ele aparece, conversa, faz companhia. Tenta ajudar a desemperrar a perna, mas a diaba não quer saber. Vai embora e me deixa ali, que não pode fazer mais nada por mim, mas promete levar sempre comida e cigarros.

Vou levando a vida normalmente, mesmo tendo sido demitido após uma semana sem aparecer no trabalho. Me habituo a nova rotina, tendo como maior aliado o João, que ainda leva comida e cigarros diariamente, no intervalo de almoço. A vida parece mais simples quando você pára de andar. Não há mais preocupações: tudo se resume a respirar.

Um dia acordo com um cachorro mijando em mim, e vejo que meu pé criou raiz. Não só o direito, mas o esquerdo resolveu imita-lo agora. Tento ver as coisas pelo lado bom: com raízes, facilitava ainda mais a minha vida, pois conseguia retirar alguns nutrientes do solo. No mesmo dia encontro a mulher que deixei esperando no restaurante e ela me conta que está saindo com o João. Faço papel de palhaço, prezando pela sobrevivência, e finjo que não sei de nada. Tem dias que era melhor não existirem.

Um dia o corpo começa a tomar forma concreta de vegetal. Crio casco feito tronco ao redor do corpo, e me saem folhas nos braços e cabeça. Tudo me conforta, pois agora não há mais necessidade do João a me trazer comida. A fotossíntese me livra da dependência dele, e agora só preciso do sol. A cada privação que me é imposta, sinto a sensação de ser mais livre, porque distante da vida. O João já não reconhece mais, a mulher do restaurante me ignora, como sempre ignorou.

Não há mais escadas, cartões pontos, roletas, portas, trabalho. Não há mais mulheres, amigos, futebol. Não há mais perna, braços ou coisa qualquer que lembre humanidade. Simplesmente não há. E sinto-me livre agora, de uma forma que nenhum homem jamais experimentou. A liberdade é ter raízes.

27.8.07

SENSAÇÃO DE SER SILÊNCIO

Ele diz que ama. Eu rio abraço nervosa sem saber o que dizer o que fazer porque ninguém nunca sabe como dizer um não pra quem sempre diz sim, eu beijo a boca que disse e que espera que eu diga também – impossível mentir essas coisas – um beijo daqueles demorados pra ver se passa a sensação de não saber o que falar, eu fecho o olho tento e não consigo ser aquilo tudo que não sou mesmo que eu quisesse ser naquele momento, eu penso filosofar sobre o sentido do amor sobre a diferença da paixão do carinho da carência procuro citar algum autor algo bem brega pra descontrair e rirmos juntos mas a inspiração não vem, eu lembro quando amei também alguém daqueles amores inofensivos que a infância traz e duram anos e como não fui feliz naquela época e como foi saber que nem sempre tudo é recíproco e como foi não lembro só da sensação de não ter sido que não foi nada boa, projeto o que aconteceria se eu dissesse um eu também mentisse não só para ele como para mim daí pra frente era aquelas coisas sem graça que os casais costumam ter como ciúmes beijinhos cobranças e programas caseiros, imagino a sensação de ouvir silêncio como resposta que ele deve estar sentindo se é boa ou pior que a sensação de ser silêncio agora que sinto, dá medo também eu quero a mãe mas não chamo que é tarde agora e o momento não é propício e que não quero parecer tão infantil quanto realmente sou para esse tipo de coisas, finjo não fingir com todo aquele dom que nunca tive para atuar e não convenço que percebo que não convenço e nem me esforço tanto em convencer na verdade, olho mostrando nem ver com ar de quem não sabe fugir que é o que quero agora e deixo transparecer infelizmente mas é tarde e sei que não dá para voltar ao momento em que ele disse o que disse. Sorrio.

20.8.07

TUDO QUE NÃO É MEU

Não precisei acender a luz porque já estava claro. E não demorei a perceber que aquela não era minha cama. Aquela não era minha casa. Do meu lado, não era mais o pinscher sempre companheiro. Tratei com naturalidade tudo que fosse natural. Busquei as roupas dispersas no chão. Olhei as chamadas não atendidas no celular. Tudo complô de mim.

Sentei na cama-que-não-era-minha e fiquei escutando a música suave que saía do aparelho de CD, também não meu. Tirei as calças que não eram minhas – sabe-se lá como foram parar em mim – e troquei-as pelas minhas, que estavam na cadeira em frente à cama-que-não-era-minha.

Ainda estava num estado entre sono e vida, quando a sensação de não possuir se apossou de mim. Aquele corpo deitado não era meu, aquilo tudo que vivi não era meu. Nada ali me pertencia, nada durava mais que segundos desfazendo-se no ar. Era tudo neblina, confusão de memória mal construída. Sumia no ar, com simples sopro de vida.

Senti o gosto prepotente do enojar-me, aquele gosto de não perpetuar que a gente sente no esôfago e não na boca. Uma queimação forte, ressaca de não-ter. Mas era prepotente, como disse. Era aquele nojo que a gente gosta de sentir, faz brincar de superior, por conseguir enojar.

Toco o corpo-deitado-que-não-era-meu. Acorda. Mando abrir a porta do quarto-que-não-era-meu. Saímos juntos do apartamento-que-não-era-meu. Me traz de volta pra casa, ajuda a fugir daquele monte de coisa que fingiu me pertencer e eu não ousei acreditar.

Mas no caminho tinha o sol brilhando forte, denunciando o dia que já havia nascido. No caminho o celular ainda tocava, um toque familiar. E vi os cachorros brincando, as casas alternando suas cores sempre claras, carros sonolentos no asfalto. Vi vida onde andei, que o caminho era longo.

Senti a sensação de tanta coisa dentro de mim, coisas que, de certo modo, me pertenciam sem querer. E o nojo transformou-se em riso. Que a ironia de trocar tanta coisa minha pelo que não me pertencia era bonita. E eu sabia que, a partir de agora, colocaria debaixo do braço tudo que é meu. E nunca mais teria saudades do que não sou.

13.8.07

LUA DE MEL

Os convidados já haviam saído, mas a sensação era de que a festa de casamento fora um sucesso. Servi um pouco mais de destilado que eu já não destingia qual era e fui deitar. Quer um gole? Silêncio. Sabe, as pessoas costumam transar na lua de mel. Alegou que eu estava bêbada. Minto que não, sem convencer. Ele ignora ainda. Pára de discutir, volta ao seu sono, sem me dar ouvidos. Ponho um CD velho dos Beatles pra tocar – ele odiava Beatles. Manda abaixar o som. Peço que abaixe o tom. Manda voltar pro interior. Digo que quero o divórcio, já. Ignora de novo e joga o sapato no aparelho de CD. Então me calo, junto com a música, que havia sido calada graças ao golpe. Ligo pra mãe, chorando. Mas ela também ignora. Me diz mimada, filha caçula, inconseqüente. Quem mandou sair de casa pra casar com um velho machista? Muito animador, ela sempre implicava por ele ser do exército. Então choro um pouco e bebo mais, que é o que resta. Ligo pro colega de trabalho, sargento Lenine. Ele sabe o que quero. Vai ao meu encontro, e nem preciso lembrar-lhe que as pessoas costumam transar na lua de mel. Não reclama de eu estar bêbada. Acata meus pedidos como ordens, e logo sou adúltera. E logo sou viúva. E admiramos o corpo, pensando que amanhã teríamos outra cerimônia em casa – mas já estaríamos longe. Antes de sair, quero olhá-lo pela última vez. Sargento Lenine consente e acompanha-me. Constatamos consternados, que, banhados em sangue, os pêlos dele grudaram na colcha de chenile. E sabemos que já é hora de partir, pois não convém a uma viúva ser vista com outro no funeral de seu marido.

6.8.07

A PORTA

Como nunca tinha atravessado aquela porta, só me restava medo. E no medo eu divagava, olhando com cuidado a fechadura, alisando tensa a maçaneta. Eu via luz lá dentro, eu ouvia o som inaudível do temer. No fim, o que sobrava era medo, duplicado, posto a sua quarta potência, que fosse. Era medo, independente de qual sua intensidade – intenso era, sei. E me restringia, o medo puxava a mão e zombava de mim, que sabia que eu era fraca demais para abrir aquela porta.

Ficava então sentada só naquele quarto escuro – este sim devia causar medo – acompanhada por fungos e insetos que teimaram em se instalar ali. Fora eles, havia um pouco de solidão desolada ao meu lado. Um quê de tristeza, sem espanto, como que uma tristeza amena, das que tomam conta devagar, e nem sequer percebemos. Mas tinha a porta também, que acabava sendo a companheira mais intensa de minha frustrada existência – existia mesmo? talvez, fosse somente o fruto de uma imaginação absurda, que criou-me para divertir-se num momento breve, e esqueceu-se de me desinventar.

Mas eu era ali, e assim via-me obrigada a ter medo da porta, que, embora fizesse parte de minha vida já, nunca fora ultrapassada por mim. Meu medo era daqueles medos curiosos que os corajosos têm, mas me faltava a coragem para saciar a curiosidade que o medo criara, então não fazia diferença alguma que meu medo fosse curioso.

Eis que um dia acordei ouvindo passos, passos silenciosamente apressados, e tive a impressão de que havia mais alguém ali, um outro ser, do outro lado da porta, semelhante a mim. Foi a primeira vez que tive a impressão de não ser único, e isso amenizou, ao mesmo tempo em que aumentou, o medo. Como teria eu vivido à margem de outro igual, sem sequer reconhecer-lhe a existência? Teria este sempre existido, ou, como eu, fora somente imaginado, talvez naquele exato momento? Mas se eu e ele havíamos sido imaginados, surgiu-me então outra angústia, pois, para sermos imaginados, era preciso que alguém o fizesse. Os passos se aproximam descuidosa e ruidosamente, medo na potência mil atinge-me. Vejo a maçaneta mexer, tudo parece meio slow motion, feito filme que nunca vi.


medo.medo.medo.medo.


A porta abre devagar, como que mágica a tivesse aberto, e sai de lá um igual. Outro como eu, mas um pouco diferente. Não falo, que nunca tive com quem falar, e nesse momento não se sabe o que dizer. Ele também cala. Aproxima-se e continua calado. Senta junto a mim, no chão úmido, com um sorriso bem mais confortável do que palavras poderiam ser. Ficamos então dividindo a umidade daquele chão que eu conhecia tão bem, e ele compartilhou comigo seu silêncio. E era esse silêncio confortável que agora tomava conta de todo o ambiente, e nos envolvia como um abraço longo do qual nenhum dos dois fazia questão de desfazer-se. Sem palavras, restou-nos apenas um intimidade confortável de quase-desconhecidos. E ali ficamos, e ficaríamos, até que outro viesse, para romper com o barulho. Ou que, quem nos inventou, teimasse em desinventar. Que agora já era tempo de termos vivido o suficiente, e o que viesse era só caminho do nosso silêncio. Tínhamos agora uma calma que era só nossa. O medo fugiu. E nossa paz fez-se terceira.

30.7.07

EU E A CORDA

Tentei soltar as cordas que sufocavam, mas o nó parecia maior do que eu. Não afrouxava, era incapaz de me deixar respirar. Mas ninguém ao meu redor estava preocupado com as minhas aflições. E eu olhava em volta diversos rostos largos e com sorrisos uniformes, feito fotografia de porta-retrato. E me atingiam aqueles sorrisos cortantes, denunciando a perfeição de uma vida rasa, que eu tentava invejar, mas faltava-me o ar até para isso. A corda não soltava, e eu era incapaz de me rebelar diante de tanta felicidade inerte ao meu redor, mas se não rebelasse a corda não rompia, e eu sabia disso e teimava em aceitar, também inerte, a condição de prisioneira. E foi tanto que a corda acostumou-se, e acostumei-me a ela. Atamo-nos, feito casamento sem cerimônias, a nossa relação de extrema dependência. Que ela só era útil enquanto servisse para privar-me da liberdade de respirar o ar que eu nem lembrava o gosto que tinha. E eu só sabia viver em meu cárcere particular, como animal privado de vida selvagem. Ensaiava pulos imaginários, fugas deslumbrantes, mas via-me prisioneiro de mim, e fugir já era assim estar sendo enganado pela minha própria ambigüidade – então sabia, que já sabia de antemão, que meu lugar era atado à corda que restringia todas as possibilidades transformando-as em apenas uma. Era pela diversidade de vôos que teimava em não decolar, tantos eram os destinos, que transformei meu único destino e ambição em ser aquilo que eu já era, mesmo sabendo que eu nunca fora aquilo, como uma equação mal resolvida. Mas a corda confortava sufocando, e prendia-me apenas a mim, fazendo com que eu sequer distinguisse quem eu era de quem eu era. Mas todos os rostos redondos me olhavam com sua insensatez digna de jovens mortais e brincavam de apertar ou afrouxar a corda. Mas eu a queria só para mim, sem variações. Os seus sorrisos transgrediam todos meus limites de contato com o mundo externo, e machucavam como agulha de vodu.

Até que fechava os olhos e ficava só de novo com meu cárcere privado. E toda aquela felicidade ingênua se apagava diante de mim, roubando-me a culpa, num fechar de olhos, por ter aberto os meus um dia.

23.7.07

JOGO DE ESGOTO

O problema é que a gente aprendeu a jogar. A gente cansou de tudo que foi sério um dia e afogamos na privada todas as lembranças bonitas que tínhamos, pensando que ali estava a liberdade, sempre tão procurada por nós. Mas, afogando as lembranças, não deixamos que elas morressem, e sempre que era preciso lembrar, tínhamos agora que descer até o esgoto para trazer o pouco que um dia tivemos a tona.

Aprendemos a andar com os ratos, e eles, com ternura, nos ensinaram suas artimanhas sujas de jogar com as pessoas. Agora jogávamos, rápidos e destemidos, risada contida e silenciosa. Mexíamos nossas peças num tabuleiro imaginário e inimaginável com toda a destreza-cautelosa que a vida subterrânea nos proveu.

(Todo mundo sempre joga aquele jogo que tem fim e um campeão, mas nós jogávamos um jogo em que as duas partes eram tão perfeitamente insanas, eram tão completamente desprovidas de vida real, que o jogo tomou proporções inesperadas.)

E completou-se um ano, cinco, oito. A jogatina perpetuava-se de uma forma que nunca imaginaríamos, o tabuleiro havia sido percorrido em todos os seus cantos e recantos escondidos, havia sido ampliado a partes que não existiam. E nós dois conhecíamos o estilo do outro de jogar, e cada um jogava o jogo contrário ao seu, jogando baixo – jogo de esgoto – como aprendemos no início. Ninguém queria ganhar aquele jogo, pois enquanto continuasse a brincadeira, a vida ainda tinha um motivo. O eterno jogar fazia de nós prisioneiros da liberdade que buscávamos antes. E já nem havia antes ou depois, pois as memórias mais distantes ficavam sempre no esgoto, mas não tínhamos mais tempo de buscá-las, pois vivíamos agora em nosso esgoto particular, sem tempo de buscar outras podridões que não as nossas próprias. O nosso tabuleiro transformou-se em casa para os ratos, ninho de sujeira, e não víamos. Éramos incapazes de ver qualquer coisa além dos trâmites relacionados ao vaivém de nossas jogadas calculadas. Nada mais era natural, pois tudo que aprendemos serviu apenas para mostrar que havíamos aprendido e que conseguíamos ainda permanecer com a brincadeira de jogar, sabendo que, sendo os dois exímios jogadores do que teimávamos em fingir que não era real, aquilo duraria para sempre, e durar para sempre era invadir a nossa liberdade de uma forma que antes nunca havíamos imaginado, mas agora estávamos completamente presos a essa perpetuação, e não havia a chave da cela, e as algemas não soltariam nunca.

Mas a sujeira em volta crescia, a podridão se amontoava ao nosso redor. Criávamos colônias de fungos gigantes, sem perceber, e os ratos se proliferavam com uma rapidez inesperada. Estávamos em um campo de lama, e quase não havia mais espaço para nosso jogo em meio a todo aquele podre que nos rodeava. Até que um dia amanhecemos tragados pela podridão que tanto cultivamos, e não havia mais espaço para o jogo, nem para nós, não havia mais espaço para nenhuma lembrança esquecida no esgoto, pois ir até o esgoto seria alcançar um nível muito superior ao que nos encontrávamos agora. Simplesmente não havia. E tivemos que desaprender a jogar.

16.7.07

AO CONTRÁRIO

Abri a geladeira e só havia uma vodka pela metade, que há tempos estava ali intocada. Sequei o sangue que escorria do nariz com um guardanapo sujo que estava na mesa, e continuei admirando a vodka, que é de álcool que meus dias e meu sangue são feitos. Puxei a garrafa e um banco, e deixei meu corpo sentar sozinho, quase sem direção, mas sabendo que ia cair direto no banco que eu havia puxado.

Trago um pouco daquela garrafa, e o gosto da vodka me entope as veias, trazendo uma energia sobrenatural. Me vingo física ou moralmente? Sempre a mesma dúvida consumindo corpo e mente. Ele ainda estava na minha cama, o vinho tinha feito com que ele dormisse mais do que imaginava – talvez fossem os calmantes, a gente nunca sabe. Tinham facas na cozinha, mas uma traição não valia a sujeira no apartamento. Depois horas para limpar todo o sangue, as unhas teriam que ser retocadas, mais dinheiro gasto em manicure, tempo desperdiçado, coisas do tipo.

Me chamaria de louca, alcoólatra, ia arrancar a garrafa da minha mão - se ela ainda estivesse na minha mão - ia mandar parar de chorar, parar de berrar, parar com tudo. Depois abraçava e cantava aquela música que ele sempre canta, e eu ficava calma de novo e bebia de novo e fazia tudo de novo, como sempre fiz. Ele ia rasgar meus planos outra vez, só para me dar o trabalho de planejar tudo de novo, ia brincar de compreensivo e tenta conversar. Ia negar meu beijo e meu pedido de desculpas, dizendo que ia acontecer de novo, porque tudo sempre acontecia de novo. Eu ia bancar a mulher traída, beber mais, xingar ele, fazer ameaças, jogar objetos, sair batendo a porta e dizendo que nunca ia voltar. Ele não daria bola, nem iria atrás. Ficaria limpando o apartamento pois sabia que quando o dia amanhecesse eu voltaria com cheiro de droga impregnado no corpo, rosto inchado de chorar e de carona com algum desconhecido que tivesse topado pagar algumas cervejas para mim durante a noite. E quando eu voltasse ele abriria a porta, o café pronto - está sempre passado - fingiria que não me viu, pegaria o jornal, sentaria no sofá, abriria o saco-plástico-que-envolve-o-jornal e fingiria ler as notícias. Depois de um tempo me olharia e mandaria que fosse pro banho, tirar aquele gosto de outros do corpo. Eu obedeço nessa hora, que não é momento de discordar. Depois durmo e sei que haverá algum outro motivo para tudo acontecer de novo - e se não houver motivo eu lembro de novo da traição antiga, que é o que tenho feito atualmente.

Mas ele acordou e perguntou o que eu fazia ali, nunca chegava antes dele acordar. Ele esqueceu-se que dessa vez eu não havia ido embora, que não tentara lhe bater ou ameaçar. Ele esqueceu que dessa vez aceitou meu beijo, e retribuiu também. Não lembrava que tudo havia transcorrido tão bem que fizemos sexo pela primeira vez depois de quatro meses, que eu tinha largado a garrafa quando ele pediu que eu largasse, que quem tomou o vinho inteiro foi ele, dessa vez. Mas ele só me olhava com olhos incrédulos, perguntou do jornal Em cima da mesa , perguntou do café Passado, forte como tu gosta , perguntou se eu já tinha tomado banho, mas dessa vez não havia gosto de outros para tirar do meu corpo. E dessa vez quem chorou foi ele, e eu não quis largar a Vodka para abraçá-lo, e eu não lembrava da música que ele cantava para me acalmar, pois eu nunca tinha prestado atenção nessas besteiras infantis que ele tinha. E não havia mais ameaça nenhuma que eu quisesse fazer, não me vinha a mente nenhum xingamento e ele estava indefeso demais. Tinha sido tudo tão ao contrário dessa vez que saí, sem bater a porta, bem antes do anoitecer, levando só a garrafa quase vazia de Vodka. E não voltei.

9.7.07

LUÍSA

Está linda, olho ou não olho? olhei, tarde demais, preciso dizer alguma coisa, o que eu falo? a bunda está maior do que antes, amo ela, acho. Mentira! Vou dizer que comprei o CD do Chico, ela é mulher, mulher adora o Chico, não falha. Comprei aquele CD do Chico ontem. Qual? Aquele que tem uma música com teu nome. Ele não tem nenhuma música com o meu nome. Estávamos há um mês separados e eu já não lembrava o nome dela, ou talvez eu sempre tenha achado que ela se chamava Luísa, de onde vinha aquele Lu, então? Luana? muito puta. Lucrecia? eu nunca poderia amar uma Lucrecia. Lurdes? nunca, nome de velha virgem, e ela não era nem velha nem virgem. devo ter amado uma puta mesmo, e nem amei que me conheço e sei que não amo mas digo que amo porque é mais confortável pensar que sinto o que os outros também fingem que sentem, e no fim todo mundo sabe que o sentimento nem existe. Lúcia? Luciana? pareciam nomes tão mais normais... mas aquela risada de puta, ela tinha risada de puta, era Luana, só podia ser Luana. ai, que nojo me dava de ter uma Luana em minha vida, como é que eu poderia apresentar uma Luana pra minha mãe, conheço o olhar de reprovação: Luana, filho, sabe onde ta te metendo, né? Depois não diz que não avisei... Lucrecia, por favor, se chame Lucrecia, daí nem finjo mais que amo, facilita tudo, não apresento nem pros amigos, não imploro de novo para voltar, nem sei se quero voltar, se for Lucrecia não quero, ninguém merece perder uma vida com uma Lucrecia ao lado, acordar ao lado de uma Lucrecia, péssimo para a auto-estima, qualquer um é capaz de conquistar uma Luísa-do-Chico, uma Luana-puta. só um ser patético casaria com uma Lucrecia. não acredito que falei em casamento, será que falei alto ou só pensei? qual o nome dela? o padre certamente falaria o nome no altar, daí era a hora de descobrir quem ela realmente era. a amiga se aproxima, definitivamente supermercado não é um bom lugar para retomar um relacionamento, o tamanho dos peitos da amiga é maior do que o da cabeça, ela usa decote, blusa vermelha e corrente prata, ela usa peitos enormes, 300ml de silicone, no mínimo Vamo, Ju? tem sotaque, não sei de onde é aquele sotaque, mas é definitivamente acentuado, amo sotaques, o que eu digo? penso num ménage, mas não sugiro, penso nos peitos, no sotaque, no nome - era Ju e não Lu - todos meus planos de casamento desfeitos por um par de peitos gigantes, empinados e simétricos. Ménage, ménage, ménage. Elas se viram, nem dão tchau, com certeza pareço um imbecil, e continuo parecendo, como todo homem que se preze, diante de um par de mulheres, e dois pares de peitos. Por ela é que eu faço bonito Por ela é que eu faço o palhaço Por ela é que saio do tom...

2.7.07

RECICLADO

Tinha o gosto do desgosto reciclado e provei de novo – e fiz de novo cara de quem não gostou – e continuei acreditando que não tinha gostado, apesar de conhecer aquele gosto tão bem como conheço meu próprio paladar. E tava estragado, eu disse que tava - mas é que era requentado, daí não soube comer com o gosto que o ontem tem, e fingi que tinha feito na hora, mas a gente sempre sabe que é sobra. Aquele gosto de geladeira, meio gelado frio requentado, quando a gente já não sabe mais qual é o calor que aquilo tinha antes de virar resto.

Mas o tempero mudou, e meu paladar não estava preparado. Enchi o olho – muita cebola, muito alho, muito molho? Penso em cuspir, vomitar, mas não faço, não sei mais como fazer, talvez nem queira e disfarce. Sobe à goela, eu ignoro, insisto em digerir, mastigando devagar, com aquele prazer que por vezes toma conta da gente, e insiste em nos fazer odiar a nós mesmos.

Vi no momento em que eu já pensei que não existia mais hora, só que agora eu sei que o tempo é bem mais relativo do que a gente pensa, e fingir que o ontem é agora é acúmulo de incertezas – e se a gente pudesse voltar no tempo não voltaria, a gente nunca volta, nunca voltou até hoje.

Tinha a forma que meu pior pesadelo não formulou, criou ali uma úlcera imediata, que álcool nenhum cicatrizava. E assim, veio outro e outros vieram e virão, agora pratos novos, feitos especialmente para a ocasião. E brinquei de perfeição, pulando nuvens disfarçadas de riso e dançando trechos inexistentes de felicidade. E ri mil vezes aquele riso que eu conhecia e trazia sempre guardado comigo – a gente nunca sabe quando precisará tirar do bolso o sorriso trancado. Andando ainda naquele céu que criei para mim, com todas as cores de um arco-íris desenhado em hidrocor, apaguei tudo que não existe – não existe mais, apaguei. E agora, ficou só o gosto do desgosto reciclado. E a dúvida sobre comer os restos de ontem ou deixar morrer de fome.