31.8.09

Teleobjetiva

Ele me disse alguma coisa que não entendi, mas fingi que sim e respondi uma resposta inteligente - não daquelas inteligências de cultura, que ele tinha, mas de uma inteligência que vem de dentro e não se mede em livros.

Então rimos porque ele pediu para eu esquecer as diferenças, logo eu, que sou tão detalhes, nunca vendo o mundo numa grande angular. E dançamos aquela valsa que era samba em silêncio.

Mais uma dose?, pensei. E bebemos enquanto eu contava os cubos de gelo em nossos copos e ele comentava sobre a desigualdade social na África, acho, ou alguma dessas coisas que todos, menos eu, percebem.

Foi quando ele disse para irmos para outro lugar e eu pensei que não era um bom dia, talvez por não lembrar seu nome. (mas eu sabia que, na bochecha esquerda, lhe sobravam três fios irregulares de barba, marca daquela personalidade displicente que eu mal entendia ainda. quantas não lhe teriam o nome gravado à mente? aqueles três fios, só eu)

Três também os cubos de gelo, contei. Mas ele não sabia nada disso. Não fazia parte daquela cultura de livros que ele tinha, ocupada sempre em ver o todo, nunca o pouco.

Definitivamente, não era um bom dia.

24.8.09

O FIM DO FIM

Seus olhos me devoram e eu vou dizer que não quero não amo não sei - por que tudo que tivemos foi grande ou pequeno demais diante das coisas que perdi neste ano e ainda não tenho certeza se posso perder mais outra das poucas certezas que tive, mas se ele olhar com aquela cara de nunca e pedir pra ficar e soluçar um soluço ainda quente de amor não vou fazer nada e me rendo de novo como já rendi outras vezes - eu sei que ele diria então Amor, fica comigo mais esta noite, a última. mas não digo nada ainda falta a coragem e sobra uma lágrima querendo inundar o olho e aquele gosto de choro na garganta que é difícil de engolir mas eu engulo com os dentes cerrados e junto vem o gosto de uma dor latente que não entendo ainda e não quero entender porque ele ainda me olha e só quero que saia dali mas não sai e não pára e me encurralada como se soubesse que quero dizer e não tenho coragem e continuo sabendo que não consigo dizer e acho que dói mais não conseguir do que doeria dizer que fim – e eu abro a boca quase vomitando aquele choro que engoli formulo a frase devagar na mente e corto palavras até que vire apenas um acabou sólido mas eu mexo a boca movimento a língua e a palavra teima em não sair e ela já é terceira entre nós mesmo não tendo sido pronunciada. Eu me lembro de tudo como se fosse agora e penso aqui com a mesma sensação que tenho sempre que penso que foi a mesma que tive, talvez porque agora seja exatamente este momento mas não tenho certeza essas coisas de tempo para mim parecem tão mais complicadas do que olhar o relógio – Cinco horas, diz a senhora de verde a meu lado na parada, o ônibus já devia ter passado – e lembrar que agora é a hora em que tudo já acabou há tempos que não conto e nunca saberei o que aconteceu depois daquela palavra não ter saído de minha boca pois quem a pronunciou foi ele – a essa parte a memória não me permite acesso talvez pelos acessos de raiva que eu tive aquele dia e provavelmente os tive porque sempre tenho e sinto agora falta do coelho que tive e não tenho mais pois mora com ele naquela casa em que vivemos sem eu nunca ter morado onde agora minhas roupas estão à minha espera talvez menos saudosas que eu delas quiçá ainda jogadas na sala em companhia das garrafas vazias de cerveja que sempre encontrava no chão – Moça, seu caderno caiu, diz a senhora de novo, como é enrugada ela, agora subindo ao meu lado no ônibus. Obrigada, digo. Mas ela quer conversar Sabe, minha filha perdeu o celular assim, subindo no ônibus distraída e eu só penso em chegar àquela casa pela última vez para buscar minhas coisas e talvez ouvir palavras de reconciliação que sei que não ouvirei mas teimo em acreditar que existe a esperança de ouvi-las, calculo, porém, que a filha dela deve somar cerca de cinqüenta anos já. A senhora é realmente velha e sua filha não poderia ser ainda uma adolescente. È verdade? Digo apenas por pena, pois entendo que velhos gostam de conversar no ônibus e talvez em 1912 as pessoas tivessem o hábito de falar com estranhos pois não havia celular mas hoje se eu preciso falar com alguém enquanto estou no ônibus eu telefono e falo e este processo me parece bastante mais simples do que contar minha vida a desconhecidos. Você tem horas, menina? A velha realmente queria conversar e eu estava agora com a bateria de minha paciência acabando e ela, que tinha relógio, me pedia agora as horas, mas contive-me e lhe disse 17h15. Ela sorriu satisfeita e pareceu-me que, por hora, havia se contentado com o diálogo, não fosse, cerca de um minuto depois, contar-me que Fico feliz, pois não me atrasarei para a missa, não gosto de chegar tarde. Neste ponto levantei-me e sentei em outro assento, mais distante, com uma gorda ocupando o assento ao lado, para que não fosse permitido à velha sentar-se junto a mim, e então pude imergir novamente em meus pensamentos, sem interrupções idosas. Lembro então do que tivemos de bom e não foi tanto e do que tivemos de ruim que me parece pouco também ao que percebo que se tudo foi pouco em tanto tempo é porque esqueci de algumas partes e talvez seja melhor continuar esquecendo mas mesmo assim insisto em tentar lembrar e prever o que iria acontecer em alguns minutos quando, descendo do ônibus, subisse as escadas até o segundo andar e me deparasse com a porta de apartamento fechada, um campainha e aquele rosto que tão bem conheci me recebendo ao abrir a porta, agora sem beijar-me enquanto eu entrava. E foi isso, seguido de um silêncio ensurdecedor, que realmente aconteceu, quando enfrentei o fim para buscar minhas roupas.

E vale aqui lembrar a tristeza indisfarçável que carreguei comigo a analisar os cômodos, todos eles, e ver que sequer as paredes lembravam de minha presença, outrora constante. O que vejo naquelas paredes é o reflexo de minha ausência. A casa em que nunca morei, enfim esqueceu-me.

3.8.09

O RUIVO

Abro os olhos e a janela. O cheiro de sexo e vinho inunda o quarto. Fios ruivos sobre o lençol azul-petróleo. Barba? Pentelho? Qual a origem daquele quarto? Aqueles pêlos misteriosos? Toda aquela ruivice poluindo minha manhã de quinta-feira.

Quinta-feira.

Ligo para o trabalho avisando que estou doente, vomitando, com febre. Um drama do tipo que bem sei fazer. Observo o feixe de luz que escapa da porta entreaberta. Provavelmente o banheiro. Um vento que sopra leve balança a porta. Ali deve estar o Ruivo, imagino eu.

Com um descomunal esforço, cavouco memórias da noite anterior, em meio ao caos alcoólico em minha mente. Lembro números. Uma festa, seis drinks, quatro cervejas, três camisinhas que provavelmente repousam no lixo do banheiro.

E o Ruivo. De onde vieram aqueles pêlos? Lembro uma calça branca larga. Uma camisa voando de cor que não sei. Uma Zorba-preta-bem-preenchida. Lembro tamanhos, desempenhos, palavras. Até a voz dizendo meu nome. A mão peluda – pêlos ruivos – abrindo a porta do apartamento. Mas falta-me o nome, o rosto, o de onde veio.

De onde veio aquele apartamento? Aquela noite. Aqueles fiozinhos indecisos entre serem laranja ou vermelhos. Os cálices ainda pousam na cabeceira. O feixe de luz que sai da porta entreaberta que deve ser o banheiro reflete nos cálices, sempre que o vento sopra um pouco.

Lembro o Ruivo de costas, em direção a porta que deve ser o banheiro. Meias pretas, a direita mais curta que a esquerda. Pernas finas e coxas idem. Bunda peluda e magra. Espinhas nas costas. Ombros largos. Cabelos de pôr do sol. Que idade tinha aquele corpo? Talvez dez anos menos que eu.

A porta do que deve ser o banheiro ainda me instiga, com seu balançar suave de vento que vem de janela. Abro o guarda-roupa onde o Ruivo pôs meu vestido vermelho-caça. Ideal para fisgar adolescentes com mania de organização. Estão lá também meus sapatos. Lembro a figura ruiva, de costas para mim, alinhando meticulosamente as pontas do sapato na prateleira mais baixa do armário.

Visto-me e me dirijo à tão misteriosa porta. O feixe de luz que reflete no cálice sobre a cabeceira dá idéia de sagrado. Pouso a mão na maçaneta redonda e quente do sol. Emperrada. Empurro a porta, para logo depois lembrar-me que já devia estar longe.

No banheiro, o rosto branco do ruivo. A ruivice que se mistura com o vermelho do sangue nas paredes. O vermelho de meu vestido. Tudo vermelho demais, feito filme do Almodóvar. Sinto a visão deturpada. Lembro números novamente. Cinco socos, oito mil, vinte e um anos, três facadas.

Vinho tinto nunca mais.