29.3.10

NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA CAIXA

Todos, menos ela, riram quando tropeçou na caixa. Pensou que maldita caixa e, tivesse mais de dez anos, talvez parafraseasse Drummond e diria no meio do caminho tinha uma caixa, tinha uma caixa no meio do caminho, mas não os tinha, portanto não o fez.

Ainda extaseada pela humilhação a que a caixa lhe submeteu – ouvia-se mesmo os meninos com suas risadas altas e alguém gritou Gorda! no outro canto do pátio; baixou as mãos ao solo e recolheu o objeto, num instinto e, cabeça baixa, bochechas róseas, saiu em direção à casa, passo apressado de quem tem medo da vida. Duas quadras e a casa lhe espera. Primeiro o portão. Então a porta. A escada. O quarto.

Já na segurança da cama, distante até dos olhos da empregada que em breve diria que nem te vi chegar e logo mais tá com fome? Se quiser trago algo pra tu comer Não, não tinha fome. Então abriu a caixa; a maldita caixa que estava no meio do caminho. Com a caixa, um sorriso. Apressou-se em escondê-la – última gaveta do armário, atrás do uniforme da escola marista. E jurou que aquele seria seu segredo.

22.3.10

READOLESCER

É sabido que, em idade avançada, as pessoas voltam a agir como crianças. De início, apenas a teimosia dos pequenos dá as caras, quase tímida, até que, pouco antes da morte lhes presentear com uma derradeira visita, chegam novamente ao uso de fraldas. No além, talvez, voltem a mamar em tetas imaginárias. O que raros comentam, porém, é que, antes de voltar à infância, uns passos antes de tornarem-se realmente anciãos, há os que fazem uma rápida incursão pela adolescência.

Foi assim com meu pai, depois de anos a acompanhar a adolescência dos três filhos, cujos amigos viam em nossa casa reduto seguro para as mentiras contadas aos pais. Acompanhou assim toda uma geração que fumava escondido dos pais, e acostumou-se a fazer segredo sobre uma ou outra vez que as amigas chegavam bêbadas em minha casa.

Mas, há algum tempo, quem adolesceu foi ele.

Fumante convicto desde antes de minha chegada ao mundo, o pai parava de fumar quase todos os verões e, em quase todos os verões, era definitiva sua decisão. Certa vez, a disposição vinha acompanhada de algum ato heróico, como jogar uma carteira ainda repleta de cigarros fora; noutras, era seguida apenas de silêncio e percebida por nós somente quando lhe pediam um cigarro e ele respondia sem certeza na voz que não fumo mais.

É notório que seus curtos períodos de não fumante eram seguidos de humor instável e excentricidades: segurava cigarros apagados na mão, usava adesivos de nicotina, chicletes diversos e toda sorte de estratégia para esquecer que não estava fumando. Ao fim do primeiro mês de abstinência, reuníamos sem querer na cozinha com olhos cúmplices, sem nada dizer, mas que todos sabíamos o significado. Era um apelo silencioso para que ele se entregasse novamente aos braços do tabaco.

O último verão, porém, foi diferente. Decretou, pelo sexagésimo verão consecutivo (posto que não consigo imagina-lo, nem criança, sem o cigarro em mãos) que havia largado o vício. Uma nova variedade de chicle de nicotina passou a freqüentar a casa, atestando a seriedade do propósito. Mas eis que, de uma hora para a outra, passou a sair no meio da noite para ver as estrelas. Voltava alguns minutos depois, o cheiro de cigarro encruado ao corpo.

Comentei com a mãe, um dia, que comportou-se e me fez comportar-me exatamente como a mãe de um adolescente faz: finge que não sabe, disse. E passamos todos a fingir, então, sustentando o teatro. Às vezes, para incutir-lhe vergonha, comentávamos em frente a amigos sobre sua vitoriosa deserção em relação ao tabaco. Ele bebia um gole de cerveja e ia ao banheiro. Na volta, o cheiro inconfundível o acompanhava sempre.

Hoje mantemos a farsa, imaginando secretamente o orgulho que ele carrega, de enganarnos há meses. Mas ainda esperamos o dia em que, sem pressa, trocará a nicotina por um pace de fraldas.

15.3.10

EU, TU E O GATO

De repente a gente estava numa banheira, eu, tu e o gato. não sei mesmo o que gato fazia ali, só sei que ele tinha o olho assim, mais amarelo, como o olho dele é. eu não conseguia saber o que tinha na banheira, acho que lama, eu disse, mas tu não escutou - nem na banheira tu escutava, acho que tu ouvia música, mas eu não sabia disso. e o gato se mexia, como afogando, mas nenhum de nós lhe deu atenção, como nunca daríamos atenção, do jeito que fazemos quando ele roça tua perna ou pula no meu colo, implorando carinho. mas agora ele se afogando e não fazíamos nada também, porque tu escutava música, eu acho, embora não soubesse, e eu pensava o que tinha naquela banheira em que nos encontrávamos e nenhum de nós estava envolto em nenhum processo mental filosófico que dissesse porque estávamos naquela banheira com o gato que se afogava a nossa frente sem que tivéssemos o trabalho de retirá-lo de lá. (Era uma bonita morte a que assistíamos e não havia nenhum motivo aparente para acabar com ela e transformá-la novamente em vida) então eu disse, merda! e nem tu, nem o gato, escutaram. ele estava preocupado demais em se afogar para se importar com o conteúdo da banheira que era agora nossa morada. o cheiro era de merda, definitivamente, e eu não sei como não percebera antes - no princípio cheguei a pensar em chocolate e, por sorte, não provei-lhe. eu sorrio desses desastres do meu olfato, já quase perdido, e de ver o gato assim, desfalecendo aos poucos, perdendo a vontade de lutar e quando eu acho que ele vai desistir, ele tira do esôfago um som que era mais que morte, um som que interrompe até a tua música e eu penso que não quero que tu fique brabo porque o gato está morrendo sozinho e dessa forma não convém que tu o ajude, sujando tuas mãos, que já estão sujas de merda, de sangue também. mas acho que tu percebe que não seria sensato fazê-lo e volta a tua música. e eu busco outra coisa para me questionar agora que sei o que inunda aquela banheira, enquanto o gato continua a morrer.



(eu sei que secretamente tu olha meu corpo contraído, o olho mexendo agitado e torce para que sejam logo sete horas, para que seja o despertador e não tu a me tirar estas inquietações)

8.3.10

DIA DE ADEUS

Então não funcionava, por mais que tentasse. E ele foi todo diminuindo, como se fosse feito de músculo - músculo-flácido-corpo-inteiro. Foi amarelecendo, não amarelando, amarelecendo, como quem não quisesse mais ser. Eu abracei ele como se fosse criança, um filho talvez que eu não quis ter mas que me sabia responsável e a diferença de idade existia, mas era pequena. Perguntei se podia acender a luz e ele pediu que não, que ficasse abraçada assim. tinha medo, não de mim, mas de um amanhã que viria dias depois. um amanhã que conviveu conosco por três dias, tão poucos e longos estes. prometi continuar abraçada, mas queria dormir. pediu pra não largá-lo - assim fisica e não sentimentalmente. eu disse: amanhã. houve silêncio e talvez ele pensasse no quanto aquela noite que não havia sido poderia decidir os próximos dias, poucos que eram. repeti: amanhã, nos vemos amanhã.(...)? - numa pontuação que não cabe usar aqui, mas uso, por única que expresse a entonação. eu ouvi ainda, quase dormindo um amanhã falado com voz de sorriso. de repente sobraram as nuvens, aquelas nuvens. e novamente nu vens ao meu alcance com tuas mãos que matam aranhas e teu sorriso de dentes de leite. amanhã sabemos, é dia de adeus.

1.3.10

SEM POESIA

hoje eu acordei sem poesia
como se fosse um dia qualquer de dezembro
mas hoje é 27
e dezembro já foi
então, como poderia ser hoje um dia qualquer?

mas os fato são apenas estes:
hoje eu acordei sem poesia
não há o que concordar ou discordar
é como de repente aquela árvore que balança
(e sequer relativizaríamos a dizer que, para a árvore, quem balança é o mundo)
somos fatos: eu e o balançar da árvore e, ainda, talvez, o dia de hoje
embora, para dizermos que hoje é 27, teríamos que dizer que é 27 para o calendários cristão
posto que há ainda alguns lugares que seguem outros calendários

hoje eu acordei sem poesia
e eu li teus versos e disse pra mim que não entendi
teus versos sempre tão simples
e eu incapaz e lê-los

então, para fingir que a poesia ainda morava em mim
tive assim que desabafar em forma de verso
como se houvesse resquícios ainda dela
talvez na sola da alma