12.5.08

INS

Estava morto e lhe bastava, não obstante a vontade de escrever, herdada de seus tempos vivos - idos tempos - era tudo inadiavelmente igual. Havia, claro, a falta de tudo que teve, mas o pensamento de que nunca teve nada era superior à ela - fora um coitado em busca de papel e caneta. Sua maior obra era o único livro escrito, que tornara ele conhecido como escritor, fizera com que desse entrevistas nos programas de maior audiência e tivesse a face estampada em algumas revistas. Serviu para conseguir mulheres, seu segundo objetivo em vida, já que as feições mal desenhadas não lhe ajudavam. Sua vida, enfim, tinha girado em torno das letras - e, de certa forma, as letras puseram fim à ela. Se com os rabiscos havia conseguido a primeira e última mulher, com esta havia obtido sua atual condição de óbito. Causas ainda desconhecidas - e que permanecessem assim, não lhe interessavam mais os assuntos mundanos.

Teimava o defundo em continuar apegado à vida literária, porém. O além mostrava-se para o cadáver de seus olhos, uma grande tela branca, a ser preenchida. Mas, ao olhar para a tela em branco, o escritor se deu conta de que não tinha mais nada a dizer. A morte era incolor e inodora, como na escola havia aprendido que a água deveria ser. Era inaudível também - uma profusão de ins que não se sentia. E, se em tudo via a grande tela branca, não era simples desejo de escrever, mas era imerso em luz branca e nada mais via senão essa luz. Na morte, dava-se adeus aos sentidos, insensível que era.

Se pela primeira vez atacava-lhe a falta de inspiração, mal maior, tão temido em vida, que vinha agora dar as caras quando mais debilitado, potenciava a sensação de falta que sentia, e a tornava como única coisa presente, atacando seus pensamentos e impedindo sequer que escrevesse sobre o único sentimento que então sabia sentir.

De tudo fêz-se loucura, pois, se em vida fora letra pura, era agora a falta delas, quase iletrado. Tão cego, surdo, mudo, que era incapaz de saber o mundo e, portanto, impossível escrevê-lo. A falta de sensações transformou-se em instinto suicida e foi tomando conta dele pois era incapaz de em morte subsitir pela única coisa que motivara sua vida.

Matou-se - sequer lembrava que já estava morto.

5.5.08

CÃES CHILENOS

Os cães chilenos nao têm pressa. Se pude aprender algo sobre o Chile, foi isso. A primeira impressão veio logo na saída do aeroporto, ao ser abordada por um exemplar de vira-latas chileno. Tinha o tamanho de um pastor alemão e me olhava sério. Parei – tenho medo, desde que, quando criança, um cachorro mordeu-me na rua, deixando a cicatriz que carrego até hoje na perna direita – mas o cachorro também estava parado, e assim continuou. Ele me dava passagem para desviar de sua ameaçadora existência.

Mais tarde pude perceber que a educação era o forte daqueles cães. Isso, claro, quando estavam acordados, fato raro. Todos, sem exceçao, possuiam a mesma estatura avantajada que aquele que eu havia encontrado na saída do aeroporto. E como dormiam aqueles falsos pastores. Encolhidos em algum canto da calçada – nunca no meio, conscientes de que atrapalhariam o fluxo de pedestres – dormiam tranquilos, alheios às notícias veiculadas nos jornais. Lembro um dia ter visto dois cães deitados, um em cima e outro embaixo de um banco de praça, em um beliche improvisado.

Eram invejáveis espécimes de vira-latas. Jamais latiam, provavelmente antevendo que o gesto poderia ser mal visto pela sociedade. Posso inclusive jurar que, um dia, vi um destes esperado que o sinal ficasse verde para que pudesse atravessar a rua. Havia um certo código de ética entre eles, todos, com sua intimidante estatura, entendiam que era desnecessário qualquer tipo de ultraje aos humanos. Seriam respeitados, desde que mantivesem respeito. Por isso não dirigiam-se a ninguém, nao pulavam e sequer pensavam em pedir comida. Os cães chilenos nao tinham a mínima pressa, andavam com seu ar blasé indiferentes aos problemas sociais.

Invejei aquele país por contar com cachorros tão decididamente educados, tão seguros de si, ao contrário de nossos vira-latas brasileiros, sempre carentes de atenção. Invejei também aquela comunidade canina, estruturada de forma a mostrar um comportamento único. Confesso, invejei o descaso daqueles cães com tudo – única preocupação fosse o frio, talvez a fome.

Quanto ao povo chileno, ainda me restam dúvidas. Mas guardo a certeza de que nossos cães têm muito a aprender com os de lá.