29.12.08

ÓRFÃ

Perdeu gradativamente interesse pelo pai. Hoje, mais fácil imaginá-lo morto. Mais que a morte, reduziu-o à inexistência. Ao perguntada, lembrava apenas que não tenho pai, e nem a imagem antiga do homem de barba que a levava aos passeios da escola lhe vinha à mente. Apagou-o, como quem esquece um namorado de infância.

Foi preciso algum tempo para assimilar a idéia do que estava acontecendo com o progenitor até que, quando entendeu, preferiu a simples ignorância que trazia antes atada à mente.

Ela não lembrava o dia em que chegou em casa e, pela primeira vez, notou algo errado. Um dedão do pé, no meio da sala. Apenas o dedão, sem sequer um pé a acompanhá-lo. Nenhum registro de sangue. Um dedo separatista. Deixou-o ali horas, a interrogá-la impaciente sobre seu destino, até optar pelo lixo orgânico.

Comentou com o pai, durante o café da manhã, fingindo desinteresse. Ele, que sequer havia reparado o fato, resolveu reparar e, para surpresa, encontrou, no fim da perna esquerda, um pé com quatro dedos, sem resquício do quinto. Nada de sangue, nenhuma cicatriz, a dor ausente a latejar os olhos.

Dali em diante, as coisas foram rápidas. Dia sim, dia não, topava-se com algum dedo desertor em meio à casa. Quando os dos pés terminaram, foi a vez dos dedos da mão reivindicarem seu espaço fora do corpo. O que parecia uma revolução falângica não terminou quando estes acabaram. Logo mãos e pés também caíram. Em todos os casos, nada de dor, nenhum sangue. Sem resquícios de que o membro um dia estivera no corpo do pai.

Um dia, ao chegar da faculdade, encontrou-o lendo jornal, apenas o toco das pernas. O pai, ignorando os acontecimentos, garantia sorridente que estou bem. Não demorou, tornou-se um tronco sem vida, a arrastar-se pela casa feito serpente inofensiva, carregando uma cabeça, que também não tardou a cair. Estranhamente, quem permaneceu vivo foi o tronco de seu corpo – o que era perceptível apenas pela respiração entrecortada e a ameaça de movimentos, que vez em quando dava as caras - e não a parte que carregava o crânio – esta, destinada também ao lixo orgânico.

A situação se agravava, quando o peito saiu do corpo. Mas a bacia e os respectivos glúteos continuavam a viver insistentemente, ignorando qualquer conhecimento biológico que ela pudesse ter adquirido até então. Não bastou um dia nessa condição, para que estes também caíssem e restasse somente um pênis constrangedoramente vivo.

Aquele não era mais seu pai, melhor ser filha de um ornitorrinco do que gerada por um pênis sem corpo. Ignorou-o a um canto qualquer da casa, deixando-o por vezes passar frio, que fome nem tinha. Esperava que, assim como as outras partes do corpo, o pênis também perdesse a vitalidade.

Mas foram anos de vida sem corpo ainda. Quando, enfim, reparou que nada aconteceria mais, e o processo estava completo – nem pêlos ele perdia – decidiu que teria de livrar-se daquela genitália.

No lixo não poderia jogá-lo, imaginava as manchetes dos jornais atordoados, após algum lixeiro, ou catador, encontrar o pênis sem corpo, ainda vivo, quiçá até ereto pelo toque da mão desconhecida, no lixo. Um circo mais bizarro que o fato de ter como pai um órgão genital. Porém, se era um pênis, e não pai, como um dia ousou ser, devia ser assim tratado. Durante meses manobrou uma forma de livrar-se do objeto vivo, tempo em que este consumia parte mais considerável de seu tempo que o pai, quando completo, havia ocupado.

Tanto tempo planejou a dispensa do corpo que, quando enfim executou-a, foi exatamente o contrário do que pretendeu, tão inverso a tudo foi, que sequer há registros ou testemunhas que provem o que realmente aconteceu.

Nas conversas com a namorada, omitira esta lembrança como todas as outras que teve do pai, que jurava não ter.

22.12.08

O CORPO

Em contraste com o calor do sexo que nos havia acometido na noite anterior, o corpo gelado ainda brincava imóvel de permanecer ao meu lado. Sabe-se lá que morte indigna é dormir com a ex. A obrigação da exposição a todos de que morrera dormindo, não em seu leito, mas em uma cama do passado, acionada por telefonemas embriagados e tesão recolhido.

Porém, eu conhecia tão bem aquele corpo gélido que já entendia seus porquês e a provocação daquela morte, enquanto a mão ainda repousava desobediente sobre meu ventre nu, me fez lembrar mais uma vez daquele egoísmo tão egoísta que ele sabia ter. A Terra havia progredido centenas de voltas sobre ela mesma em que ele sequer pensara em morrer. Na verdade pensava, mas do plano ao ato havia quilômetros de distância que a preguiça sempre colada àquele corpo, que de juventude não levava nada, senão a idade, era incapaz de transpor.

Justo naquele dia, no dia mais frio do inverno, em que ousei esquentar o corpo com aquele outro corpo, que agora jazia pacientemente ao meu lado, este me inventa uma morte assim, inesperada. É claro, a perícia não ousaria me culpar. Minhas preocupações estavam longe disso, confesso. Tudo indicava uma morte natural e tranqüila, exceto aqueles olhos de dor, o olho de quem chamou por alguém e não foi ouvido – se não tivesse já há tempos o hábito de falar dormindo, quem sabe eu pudesse salvá-lo? Acostumada, mesmo que ganisse a morte ao meu lado, eu apenas o sacudiria, imaginando-me boa samaritana por livrar-lhe de um pesadelo.

Mas agora cá estou, afastando as mãos ainda coradas, porém frígidas, de meu abdômen. As unhas roídas denunciam a fragilidade sentida nos últimos dias. Denunciariam, talvez, para um leigo, não a mim, perita naquele corpo. As promessas de parar de roê-las postergadas até ontem – hoje, não as renovaria. Dizem que as unhas dos mortos continuam a crescer ainda, assim como os cabelos. Consternada com o óbvio atraso que aquele cadáver ocasionaria em meu dia, não me resta outra coisa a não ser deixá-lo com aspecto de homem limpo – coisa que, em verdade, nunca foi. Assim, lixo e limpo aquelas unhas imundas e despontadas – tanto as dos pés quanto as das mãos. Uma base traz-lhe de volta a cor às unhas, já arroxeadas pelos inevitáveis efeitos da morte.

Na impossibilidade de movê-lo ao chuveiro, limpo com pano úmido apenas, todas as intricadas curvas daquele corpo. Umbigo, pênis e reentrâncias entre as curvas da barriga merecem atenção especial, pela sujeira acumulada. Retoco o desodorante da axila, apesar de crer que mortos, apesar do cheio ocre, não possui um odor característico desta região. Tesoura em punho, retoco-lhe o corte de cabelo – o qual não mais poderia ser referido como corte, considerando a distância temporal da última vez que aqueles fios viram uma tesoura.

Assim, limpo, em nada lembra o homem que foi. A mim não mais dirige palavras ríspidas, nem sequer palavra alguma. Disco para o hospital e em minutos a ambulância está ali e logo sei que o verei novamente, a mãe em prantos, em seu funeral.

Enquanto me despeço silenciosamente do defunto, tenho uma sensação quase triste que me invade, de que jamais terei tudo. Visto que agora, quando ele finalmente tornou-se o homem que eu sempre quis que fosse, parece tarde demais, e é um carro branco que o leva ao invés de ser trazido pelo famoso cavalo, da mesma cor. Me resta apenas imaginar que as flores no velório são para mim.

21.7.08

SER SÓ

Brincou de esperar uma, oito, e mais vezes. Fingiu latejar o coração. Mentiu amor. Era pra ser caso fosse, mas não sabia e insistiu escrever recados para ninguém e saber que enviaria um dia. Pintava corações e preenchia com nomes que nunca fizeram parte dela. Contava às amigas aventuras amorosas que surgiam no exato momento em que eram narradas, mas a dor que havia era muito anterior.

Chorava encolhida na cama fingindo saber por quem sofrer – e, num ataque, rasgava todas as correspondências nunca recebidas, jogava fora as flores que ela mesma havia arrancado do jardim e jurava nunca mais amar alguém novamente. Tomava remédios, dizia suicídios aos familiares, escrevia cartas a todos que a fizeram sofrer e ela sequer sabia quantos e quem eram.

Mas acordava renovada e com novos nomes calcados na mente, como que um outro amor tivesse surgido naquele quarto escuro em que não conhecia ninguém. Presenteava-se então com todo carinho do mundo, muita vaidade e algum sorriso escondido. Mas o momento romântico durava apenas até que surgisse, num repente mais rápido que a paixão, o próximo colapso.
De tanto fez e jurou que cansou de acreditar no que nunca havia sido. Aos poucos aprendeu solidão.

Jamais entendeu que só amava o amor.

14.7.08

CONSERTO

Jogou a mochila nas costas e foi embora descrente. Bateu a porta, com a certeza absurda – tão absoluta, absorta em si – de que jamais colocaria as mãos naquela maçaneta e os pés no carpete encardido de ciúme lamacento. Entrou na profusão de cores caleidoscópicas que o coração mandava, fundindo o real num berro infinito, que acabou.

Nas escadas, ainda indecentemente triste, via tempo jogado no abismo, e o quanto humilhou saber não ter sido sempre e sempre e só o único. Chamava infernos inteiros àquela que nunca o traiu, embora tivesse ousado pensar. Planejava mortes inexeqüíveis, equações mal resolvidas, pousava a cabeça num mundo distante em que só o que vivia era a raiva.

Vomitava palavras de repulsa e agressividade. Impossível olhar para os lados ao atravessar a rua com tanta lágrima e sem pára-brisas. Maldizia todos que pensassem atropelar os outros e não a ele. A morte não era angústia, mas único objetivo perseguido por esquinas e quadras dali. Que ela sentisse remorso, que soubesse que foi tudo culpa dela ao vê-lo no chão, órgãos estilhaçados, tudo regado a um sangue quase morno, requentado em ódio.


Em casa, sabia todo o teatro inventado na cabeça dele. Entendia todas as ações dramáticas recriadas meticulosamente de qualquer enredo barato – e gostava. O drama fazia-o frágil, como jamais mostrava-se. E o conserto, mesmo que ele clamasse impossível, era simples telefonema e palavras bonitas. Sempre voltava, nariz e olhos vermelhos, ainda com cheiro de raiva, mas domável como uma fera circense.

O teatro só servia para amainar as coisas, no fim. Eram dias de tédio, então, até a nova explosão de ódio latente, que sempre vinha e repetia-se e repetiria mil vezes até que um dia fosse real. E aquela era talvez a maior alegria que tinha, saber consolar, dar riso à raiva, tirar da espuma que lhe escorria a boca um beijo seco e sincero, de tesão incorrompido. E era só assim, depois de tanta inconformidade inverossímil, de tanto ciúme pelo dito e não feito, que enfim transavam, degelando o peso dos anos.

7.7.08

UM MUNDO NANICO

Após tambores rufantes, bailarinas em transe, espetáculos pirotécnicos e aplausos efusivos, a saída de emergência pisca sua luz vermelha para a retirada das tropas. Todo aquele palco perfeitamente preparado para a perfeição, artistas em seus postos, ensaios e descenas, tudo montado para uma platéia falsa pronta para ilusão – acabou.

A luz do palco não acende, a lona do circo murchou, o palhaço mostra rugas de insatisfação na cara despintada – despeitado! –, a única magia que o mágico lembra agora é o truque de sumiço, sua assistente, há pouco cortada em duas, pega a bolsa e vai embora, tão ou mais inteira do que quando havia chegado. Os tigres e leões adestrados tornaram-se indefesos animais de estimação. A corda bamba, em protesto, não balança mais. Equilibristas se desequilibram nos percalços dos paralelepípedos da rua.

No silêncio, uma coruja aplaude ao longe o espetáculo findo através de seu som característico. O público não lembra, sorriu, mas o riso ficou no travesseiro, em apenas mais uma das longas noites dormidas. Todas as vidas transformadas em magia, beleza em movimento, corpos treinados para voar por algumas horas – depois, era manter o pé no chão e a cabeça na estrada.

Em um tempo fez-se a festa debaixo daquela lona, agora eram vidas perdidas, vagando cada qual em seu rumo, não mais transformar aquelas vidas em palco. Era agora tudo simples, só viver sem saber exatamente qual é a vida que cada um tinha. Era tudo separado, não mais a coisa única que foram.

Naquele picadeiro abandonado, ninguém lembrou que o anão via um mundo.

9.6.08

RAZÃO

- Não dá mais.
- Como assim?
- Assim.
- Porquê?
- Não tem.
- Tem outro?
- Não.
- Ciúme?
- Não.
- Me diz...
- Não sei, oras.
- É tua mãe, né? Te envenenando...
- Não.
- É outro então. Eu sei que é outro. Quem é?
- Não é.
- Ta infeliz?
- Não.
- Não me ama mais. É isso.
- Amo.
- Então...?
- Não sei.
- É outro, só pode ser...
- Não é.
- Mas então... Me diz. Porquê? Tem que ter uma razão. Me diz.
- Razão demais.

12.5.08

INS

Estava morto e lhe bastava, não obstante a vontade de escrever, herdada de seus tempos vivos - idos tempos - era tudo inadiavelmente igual. Havia, claro, a falta de tudo que teve, mas o pensamento de que nunca teve nada era superior à ela - fora um coitado em busca de papel e caneta. Sua maior obra era o único livro escrito, que tornara ele conhecido como escritor, fizera com que desse entrevistas nos programas de maior audiência e tivesse a face estampada em algumas revistas. Serviu para conseguir mulheres, seu segundo objetivo em vida, já que as feições mal desenhadas não lhe ajudavam. Sua vida, enfim, tinha girado em torno das letras - e, de certa forma, as letras puseram fim à ela. Se com os rabiscos havia conseguido a primeira e última mulher, com esta havia obtido sua atual condição de óbito. Causas ainda desconhecidas - e que permanecessem assim, não lhe interessavam mais os assuntos mundanos.

Teimava o defundo em continuar apegado à vida literária, porém. O além mostrava-se para o cadáver de seus olhos, uma grande tela branca, a ser preenchida. Mas, ao olhar para a tela em branco, o escritor se deu conta de que não tinha mais nada a dizer. A morte era incolor e inodora, como na escola havia aprendido que a água deveria ser. Era inaudível também - uma profusão de ins que não se sentia. E, se em tudo via a grande tela branca, não era simples desejo de escrever, mas era imerso em luz branca e nada mais via senão essa luz. Na morte, dava-se adeus aos sentidos, insensível que era.

Se pela primeira vez atacava-lhe a falta de inspiração, mal maior, tão temido em vida, que vinha agora dar as caras quando mais debilitado, potenciava a sensação de falta que sentia, e a tornava como única coisa presente, atacando seus pensamentos e impedindo sequer que escrevesse sobre o único sentimento que então sabia sentir.

De tudo fêz-se loucura, pois, se em vida fora letra pura, era agora a falta delas, quase iletrado. Tão cego, surdo, mudo, que era incapaz de saber o mundo e, portanto, impossível escrevê-lo. A falta de sensações transformou-se em instinto suicida e foi tomando conta dele pois era incapaz de em morte subsitir pela única coisa que motivara sua vida.

Matou-se - sequer lembrava que já estava morto.

5.5.08

CÃES CHILENOS

Os cães chilenos nao têm pressa. Se pude aprender algo sobre o Chile, foi isso. A primeira impressão veio logo na saída do aeroporto, ao ser abordada por um exemplar de vira-latas chileno. Tinha o tamanho de um pastor alemão e me olhava sério. Parei – tenho medo, desde que, quando criança, um cachorro mordeu-me na rua, deixando a cicatriz que carrego até hoje na perna direita – mas o cachorro também estava parado, e assim continuou. Ele me dava passagem para desviar de sua ameaçadora existência.

Mais tarde pude perceber que a educação era o forte daqueles cães. Isso, claro, quando estavam acordados, fato raro. Todos, sem exceçao, possuiam a mesma estatura avantajada que aquele que eu havia encontrado na saída do aeroporto. E como dormiam aqueles falsos pastores. Encolhidos em algum canto da calçada – nunca no meio, conscientes de que atrapalhariam o fluxo de pedestres – dormiam tranquilos, alheios às notícias veiculadas nos jornais. Lembro um dia ter visto dois cães deitados, um em cima e outro embaixo de um banco de praça, em um beliche improvisado.

Eram invejáveis espécimes de vira-latas. Jamais latiam, provavelmente antevendo que o gesto poderia ser mal visto pela sociedade. Posso inclusive jurar que, um dia, vi um destes esperado que o sinal ficasse verde para que pudesse atravessar a rua. Havia um certo código de ética entre eles, todos, com sua intimidante estatura, entendiam que era desnecessário qualquer tipo de ultraje aos humanos. Seriam respeitados, desde que mantivesem respeito. Por isso não dirigiam-se a ninguém, nao pulavam e sequer pensavam em pedir comida. Os cães chilenos nao tinham a mínima pressa, andavam com seu ar blasé indiferentes aos problemas sociais.

Invejei aquele país por contar com cachorros tão decididamente educados, tão seguros de si, ao contrário de nossos vira-latas brasileiros, sempre carentes de atenção. Invejei também aquela comunidade canina, estruturada de forma a mostrar um comportamento único. Confesso, invejei o descaso daqueles cães com tudo – única preocupação fosse o frio, talvez a fome.

Quanto ao povo chileno, ainda me restam dúvidas. Mas guardo a certeza de que nossos cães têm muito a aprender com os de lá.

28.4.08

A ARTE DE APRENDER A VOAR

Todos os jornais estampam o triste drama da menina Isabela, jogada pela janela há cerca de um mês. A menina ainda revira-se no caixão e é ressuscitada diariamente em noticiários de todos os tipos, mesas de bar, discussões em família e textos de pretensos literatos.

Há também um consenso entre especialistas das mais diversas áreas - de estatísticos a secretárias - sobre a culpa do pai e a crueldade com que o crime foi cometido. O assunto, como todos pudemos acompanhar, é de extrema relevância para a sociedade.

Mas está morta. Nenhum rito de magia negra a trará de volta à vida - é simples, ela não irá contar a ninguém a sua visão dos fatos. Então, eu, com o conhecimento sobre o caso próprio de um perito em leiguice, conto a minha.

Eu advogo em prol do pai.

Ele, extremamente afetuoso, portou-se como uma das várias espécies de pássaros que, na tentativa de ensinar a seus rebentos a arte do vôo, os empurram para fora do ninho, até que este aprenda a voar. Esses pássaros sabem o bem que fazem a sua prole, pois a comunidade pássara espera deles que saibam voar e, se não for com seus progenitores, com quem hão de aprender? O pai de Isabela, bastante atento aos acontecimentos da natureza, achou-se no direito de voltar às origens e tentar ensinar a filha a arte do vôo. Está certo, entendo que talvez o ato possa parecer um tanto retrógrado para alguns, mas é direito inerente ao homem a liberdade para escolha de estilo de vida que lhe agrade.

O ato daquele pai foi um ato apaixonado, digo. Prezando pelo bem e pela evolução de sua filha, como tantas espécies de pássaros fazem e fizeram ao longo do tempo. E é graças àqueles pássaros atentos às necessidades de seus pequenos, que podemos hoje acompanhar o vôo de diferentes gerações.

Mas é que o povo gosta de sangue e quer um assassino truculento em cada esquina (há boatos de que o novo plano de governo, inclusive, será Tragédia para todos).

As pessoas, definitivamente, não sabem ver a beleza que há por aí.

10.3.08

5 DE MARÇO

Um homem foi morto na agência de banco que freqüento. Era assalto. Podia ser eu – mas não vou ao banco no início do mês. Ia depositar dinheiro, talvez até fosse um office boy com o medo ingênuo de perder o salário mínimo que ganhava no fim do mês. Não li a notícia, confesso. Ouvi falar. No ônibus.

Ia depositar dinheiro, saiu de um banco e entraria em outro – não chegou a entrar. Sabe lá quanto tinha o dito homem – sabe-se, por acaso, se era homem mesmo? Podia ser uma mulher, talvez nada realmente tivesse acontecido e tudo que ouvi fosse mero boato, saído da boca de uma daquelas pessoas sempre precisa ter algo extraordinário para contar.

Não sei que idade tinha, qual sua classe social, que fim teria o dinheiro – talvez até dinheiro sujo, o safado, quem sabe fosse um laranja – mas agora ele estava morto, na mesma agência bancária que freqüento. Logo eu, que nunca fui ao banco em início de mês, me deparava agora com aquela situação inquietante, a confirmar meus medos.

Não dormi aquela noite. Contei o boato para tantos quanto vi na fila de todos os bancos que freqüentei daquele dia em diante. Eu, que em toda minha vida havia sido chamado de neurótico, graças à pequenos cuidados que tomava sempre, como não freqüentar bancos em início de mês, tinha agora a prova de que sempre estivera correto. Pois um homem que sequer sei se é homem, de idade, classe social e índole que não posso estabelecer, morreu – imagino que tenha morrido, ao menos, o cobrador não mentiria – graças a uma quantia que não sei qual era, nem imagino a procedência ou o destino, na agência de banco que freqüento, logo no início do mês.

Poderia ter sido eu – mas eu não vou ao banco no início do mês.

3.3.08

SUICÍDIO SEM PLATÉIA

As pessoas no centro têm pressa. Passa correndo o carro, o ônibus e a lotação. O gari trabalha com calma. Apessados os estudantes com mochilas da Universidade Federal - sabe-se lá de onde vem tanto orgulho de estudar lá - talvez atrasados para a aula, talvez com medo do furto, talvez entrando no ritmo. Ninguém repara no mendigo fitando a morte, sobre o viaduto - as pessoas do centro têm pressa.

O ônibus desacelera ao se aproximar o fim da linha, mas o ritmo do centro é constante, levando uma multidão massiva e disforme - que rosto têm essa multidão? é branca, vermelha, amarela? O cego resolve enxergar com a bengala nas mãos - se os olhos funcionassem... - não perde a velocidade do cordão. Ninguém gritou pula para o mendigo que ameaçava suicídio - talvez quisesse que alguém o impedisse, mas as pessoas do centro têm pressa.

O ladrão que corre com a bolsa de uma senhora - roubada, pobre - passa despercebido, em meio à multidão que se aglutina numa maratona desenfreada rumo à rotina. Todos completando a boaiada, sincrônicos no balé de seus atrasos. Pára ônibus, táxi, lotação. Precisam se deslocar para um lugar onde possam sentar-se sem pessa. Quem não tem pressa é o corpo do mendigo atirado no chão - plena Borges de Medeiros - por onde passam inquietos e indiferentes os transeuntes - as pessoas no centro têm pressa.

25.2.08

MINHA PRÓDIGA CARREIRA NO MUNDO DAS LETRAS

Uma maldita folha em branco zombando de mim – quem dera fosse folha ainda, como as que usava para escrever antigamente, mas não passava de um documento eletrônico, um arquivo de word , um pontodoc – a idéia não ousava aparecer em minha frente, temerosa de que eu a apanhasse e jogasse na tela, como quem joga um inseto no vaso, e a deixasse presa ali – mal sabia ela que essa era a melhor prisão que uma idéia poderia ter: o papel – ataca-me o estômago, talvez fosse a coca-cola, talvez o queijo mofado, única refeição do dia, continua a tela ali a me fitar com olhar descrente esperando que meu cérebro transmitisse uma idéia surgida de algum lugar secreto – um lugar que ainda cultivasse alguma criatividade no jardim e eloqüência na escrita – e meus dedos começassem a jogar as letras alternadamente, mas com alguma lógica que só eu saberia qual era, formando frases ingênuas que se ligariam de uma forma inesperada, formando a obra máxima de minha vida que me renderia seguidores Brasil afora, uma cadeira na ABL e uma aposentadoria vivida a base de direitos autorais – mas não: meu cérebro, rebelde massa cinzenta, já nervoso por falta de atividade, teimou em não produzir idéia alguma que servisse, acusou falta de inspiração, falta de comida, falta de paixão; as mãos mais ágeis um pouco, entraram em greve, pois não poderiam trabalhar sem o tão estimado chefe, que sempre lhes guiou dentre os desafios do teclado, mostravam-se agora apenas instrumentos inúteis de movimentação, gesticulando desordenadamente, como que xingassem a mim ou ao computador ou mesmo ao cérebro, que as deixava sós e confusas, inúteis; não formou-se frase sequer e essa ligou-se a nenhuma outra, pois era incapaz de pensa-las, eis que então minha obra máxima não foi produzida e se alguém um dia me seguiu depois do momento em que aqui relato foi apenas um cachorro vadio a procura de que alguém lhe desse um prato de comida fria e a única cadeira em que sento é a de madeira, junto à mesa da sala, solitária – todas as outras já sem pernas – e para mim jamais houve aposentadoria ou centavo ganho com direitos autorais; a folha zombeteira não me deixou entregar a primeira redação na escola, arruinando minha pródiga carreira no mundo das letras – talvez eu pudesse ser técnico em enfermagem.

18.2.08

NA CORDA BAMBA

Caminhei na corda bamba. No fim, havia um pote de ouro – ou seria no fim do arco-íris? Foram passos apressados, controlando a inconstância até que ela fingiu-se constante para agradar a dor do medo que sentia enquanto andava sem rumo, rumo ao fim. A platéia, quilômetros verticais abaixo, aplaudia, torcendo intimamente para que eu caísse. Tragédia agrada a multidão. Insisti em permanecer equilibrada, que nunca tive equilíbrio nenhum na vida, mas a corda dizia: ou ele ou eu. Optei por equilibrar-me.

E foram meses ou anos que não sei, pois era incapaz de olhar no relógio, temendo a queda. A platéia uniforme, era sonora, não via seus rostos – aconselharam não olhar para baixo e segui o conselho. Minha vida tornou-se reta, como nunca tinha sido, sempre em caminhos tortos – tão melhores para se perder. Agora, nunca me perderia, perseguia o fim que nunca chegava e essa era a única expectativa que agora tomava conta do meu dia. Conseguir. O pote de ouro esqueci – deveria ser no fim do arco-íris mesmo e não havia arco-íris ou horizonte algum próximo à mim, só a corda e o som da platéia, temendo e ansiando minha queda.

Nem a queda nem o fim mostravam-se próximos. Os passos tornaram-se mecânicos, a corda balançava ao vento e eu balançava junto, em sintonia perfeita. Viramos um só, indissociáveis. Todo o contexto regrado e monótono era minha única visão de mundo agora: a platéia, a corda, o equilíbrio.

Mas aconteceu o dia em que cansei e resolvi brincar de desequilíbrar. E olhei para baixo e vi as horas e o tempo havia passado e a vida estava passando. Desequilibrei em frente a platéia que eu finalmente pude ver e no caminho rumo ao chão deslizei num arco-íris inusitado, que nunca imaginei que houvesse sob meus pés colados à corda. E fundi-me às cores que se encheram de mim, preenchendo a vida preto e branco que eu tivera durante todo o tempo na corda. Escorreguei nas cores que agora eram minhas, até fundir-me ao tempo e chegar ilesa ao chão, perante a platéia incrédula. Incrédula também eu: o pote de ouro não existia.

4.2.08

ESCADAS

Me fez perceber que era uma cidade feita de escadas - e subíamos, descíamos e sentavamos em algum degrau aleatório, que era morada de nossa alegria durante curtos minutos, até que exercíamos novamente nossa habilidade em ir e vir, pulando degraus e esquecendo do tempo nos pequenos azulejos que o Selaron meticulosamente encaixou em um mosaico preparando para aquela madrugada.

Em cada degrau haviam novas descobertas e a cada descoberta esquecíamos um pouco do resto do mundo, que não cabia na escadaria colorida. Os degraus fizeram-nos prometer que continuaríamos subindo sempre - o céu nunca foi limite.

Mas eu sabia que o tempo era curto e os ponteiros do relógio nos olhavam como guardiãoes aflitos, prontos para me retirar das escadarias que só ali eu encontrava e levar de volta àqueles dias de dezesseis horas - oito jogadas fora. Ele fingia não saber de tudo isso, mas tinha a presença incômoda daquele tic-tac regulando nossa incessante busca ao último degrau, independente de qual fosse o último.

Chegamos, enfim, às nuves e continuaríamos subindo incontáveis quilômetros verticais, não fosse hora de despertarmos da jornada e seguirmos nossos rumos, em sentidos opostos, que opostos sempre fomos, antes da escalada.

Foi o relógio que nos trouxe a sensação azeda de que tínhamos que descer novamente, e descemos todos os degraus, até que continuei descendo - agora sozinha e ainda entre as nuves - rumo ao sul.

Mesmo distantes, continuaríamos subindo sempre, pois sabiamos, como um segredo que se fala calado, que o céu nunca foi o limite.

28.1.08

VENTO

Vento. Era noite já quando começou a ventar. Lua cheia. Tempos que não via noite clara como aquela. Subiu no terraço do prédio – 15º andar. Em volta, outros tantos prédios de mesma altura enfileiravam-se no centro barulhento da cidade. Podia sentir o cheio forte da poluição berrando em seus ouvidos. Luzes acendiam e apagavam sem método. Televisores mostravam suas cores nas janelas abertas. O vento gemia baixinho o medo de toda aquela civilização. De repente sabia que naquela hora tinha alguém morrendo perto, mendigo passando fome, criança na sinaleira. De repente sabia tanto aquele vento que ele nem quis imaginar. Gemia solidário àquela pobreza toda que tínhamos dentro de nós e carregava consigo o azedo de tudo que jogamos fora e devíamos continuar carregando. Infeliz do vento, que sabia demais e tinha tempo de assobiar, por entre os prédios mal-cheirosos, levando consigo tudo que tinha – nada. Nostálgico. Antes, corria quieto entre árvores, brincava de fazer ondas em rios. Agora, aventura era ser cortado por aviões, que lhe roubavam aos poucos as nuvens, ou ficar preso entre os prédios do centro. Poucos, como ele, apreciavam o som do vento, as nuvens em formação diversa, movendo-se lentamente ao sabor da vida, as poucas estrelas que mostravam suas caras no céu, naquela noite. Ouviu o zunido baixo com cuidado, como quem ouve o choro baixinho de um fim, lembrava a pipa que soltava na infância, num barranco próximo a onde morava, na periferia. E agora, como o vento, ficava preso entre os arranha-céus da cidade, recheados de rotina morta em suas horas delimitadas pelo relógio. Do vento, coitado, roubaram um pedaço. Tiraram-lhe o habitat, um brinquedinho qualquer, impuseram-lhe muros que não conhecia. Ainda restava admiração àquele movimento do ar, à brisa forte. Pois o vento, ele sabia – invejava até – ainda era livre.

15.1.08

MORTES

Carência é o sentimento que mais me matou até hoje. Porque, de todas as vezes que morri, de todas as mortes nobres ou não, a carência foi quem mais vezes esteve presente. E a todos os meus enterros ela fez questão de ir, mesmo quando não convidada. Foi graças a ela que conheci assassinos impiedosos, e que algumas vezes matei também.

E agora estamos aqui, abraçadas. Palavras presas na garganta, um berro que tem medo de sair. Um nunca mais que temo ser mentira. Ah, minha sempre companheira, presente em corpos tão diferentes entre si.

Ao longe, minha cabeça lembrava uma música que nem lembro e que dizia que traições são bem mais sutis, mas esquecia-se de citar um elemento de comparação. Para mim, as traições são sutilezas da alma, e da amiga carência. Importa se concretas?

A quem interessa as desculpas, quando já estou morta? De que me valem lágrimas no velório, se em vida não foi capaz de me dar sorrisos sinceros de felicidade? Que alegria falsa, amiga carência, me proporciona de mês em mês, sob um novo rosto falso, futuro assassino de mim?

E lembro disso agora pela proximidade com que faleci pela última vez. Não chegou a ser inesperado para mim, embora eu tenha demorado um pouco a assimilar a idéia fúnebre. E penso que talvez os outros tenham sido pegos de surpresa. A graça maior foi eu perceber, constrangida, que acostumei-me.

Não passei mais dias e noites deitada no caixão, braços cruzados sobre o peito e olhos fechados para o mundo. Ao contrário. Sorri um pouco, talvez consternada, talvez por falta de vontade de chorar, e anseio de mostrar algum sentimento qualquer que fosse, mesmo que nem nome tivesse.

Este funeral foi, sem dúvida, muito estranho. Nem a carência veio dar as caras no meu breve sofrimento. Sequer tive tempo de parar de respirar, me neguei a fechar os olhos, procurando imediatamente algo que me matasse com o sofrimento que eu realmente merecia, como das outras vezes que tinha morrido.

Mas não, o mundo tornou-me descrente. As vidas que tive, todas breves, cansaram-me o suficiente para que eu não saiba mais a direção que devo tomar quando as mesmas acabam. Se todas acabam mesmo, talvez a graça esteja em vivê-las. Em aproveitar tudo o que elas têm a oferecer, sem culpa nenhuma pela leviandade dos sentimentos. Quem sabe, o melhor seja vagar pelo mundo sorrindo, fingir que nada aconteceu. E, de vez em quando, soltar uma lágrima mentirosa, para demonstrar uma humanidade artificial.

E agora, pra que lado vou? Saltando livre pelo pasto, não sei mais qual grama provar.