29.12.08

ÓRFÃ

Perdeu gradativamente interesse pelo pai. Hoje, mais fácil imaginá-lo morto. Mais que a morte, reduziu-o à inexistência. Ao perguntada, lembrava apenas que não tenho pai, e nem a imagem antiga do homem de barba que a levava aos passeios da escola lhe vinha à mente. Apagou-o, como quem esquece um namorado de infância.

Foi preciso algum tempo para assimilar a idéia do que estava acontecendo com o progenitor até que, quando entendeu, preferiu a simples ignorância que trazia antes atada à mente.

Ela não lembrava o dia em que chegou em casa e, pela primeira vez, notou algo errado. Um dedão do pé, no meio da sala. Apenas o dedão, sem sequer um pé a acompanhá-lo. Nenhum registro de sangue. Um dedo separatista. Deixou-o ali horas, a interrogá-la impaciente sobre seu destino, até optar pelo lixo orgânico.

Comentou com o pai, durante o café da manhã, fingindo desinteresse. Ele, que sequer havia reparado o fato, resolveu reparar e, para surpresa, encontrou, no fim da perna esquerda, um pé com quatro dedos, sem resquício do quinto. Nada de sangue, nenhuma cicatriz, a dor ausente a latejar os olhos.

Dali em diante, as coisas foram rápidas. Dia sim, dia não, topava-se com algum dedo desertor em meio à casa. Quando os dos pés terminaram, foi a vez dos dedos da mão reivindicarem seu espaço fora do corpo. O que parecia uma revolução falângica não terminou quando estes acabaram. Logo mãos e pés também caíram. Em todos os casos, nada de dor, nenhum sangue. Sem resquícios de que o membro um dia estivera no corpo do pai.

Um dia, ao chegar da faculdade, encontrou-o lendo jornal, apenas o toco das pernas. O pai, ignorando os acontecimentos, garantia sorridente que estou bem. Não demorou, tornou-se um tronco sem vida, a arrastar-se pela casa feito serpente inofensiva, carregando uma cabeça, que também não tardou a cair. Estranhamente, quem permaneceu vivo foi o tronco de seu corpo – o que era perceptível apenas pela respiração entrecortada e a ameaça de movimentos, que vez em quando dava as caras - e não a parte que carregava o crânio – esta, destinada também ao lixo orgânico.

A situação se agravava, quando o peito saiu do corpo. Mas a bacia e os respectivos glúteos continuavam a viver insistentemente, ignorando qualquer conhecimento biológico que ela pudesse ter adquirido até então. Não bastou um dia nessa condição, para que estes também caíssem e restasse somente um pênis constrangedoramente vivo.

Aquele não era mais seu pai, melhor ser filha de um ornitorrinco do que gerada por um pênis sem corpo. Ignorou-o a um canto qualquer da casa, deixando-o por vezes passar frio, que fome nem tinha. Esperava que, assim como as outras partes do corpo, o pênis também perdesse a vitalidade.

Mas foram anos de vida sem corpo ainda. Quando, enfim, reparou que nada aconteceria mais, e o processo estava completo – nem pêlos ele perdia – decidiu que teria de livrar-se daquela genitália.

No lixo não poderia jogá-lo, imaginava as manchetes dos jornais atordoados, após algum lixeiro, ou catador, encontrar o pênis sem corpo, ainda vivo, quiçá até ereto pelo toque da mão desconhecida, no lixo. Um circo mais bizarro que o fato de ter como pai um órgão genital. Porém, se era um pênis, e não pai, como um dia ousou ser, devia ser assim tratado. Durante meses manobrou uma forma de livrar-se do objeto vivo, tempo em que este consumia parte mais considerável de seu tempo que o pai, quando completo, havia ocupado.

Tanto tempo planejou a dispensa do corpo que, quando enfim executou-a, foi exatamente o contrário do que pretendeu, tão inverso a tudo foi, que sequer há registros ou testemunhas que provem o que realmente aconteceu.

Nas conversas com a namorada, omitira esta lembrança como todas as outras que teve do pai, que jurava não ter.

22.12.08

O CORPO

Em contraste com o calor do sexo que nos havia acometido na noite anterior, o corpo gelado ainda brincava imóvel de permanecer ao meu lado. Sabe-se lá que morte indigna é dormir com a ex. A obrigação da exposição a todos de que morrera dormindo, não em seu leito, mas em uma cama do passado, acionada por telefonemas embriagados e tesão recolhido.

Porém, eu conhecia tão bem aquele corpo gélido que já entendia seus porquês e a provocação daquela morte, enquanto a mão ainda repousava desobediente sobre meu ventre nu, me fez lembrar mais uma vez daquele egoísmo tão egoísta que ele sabia ter. A Terra havia progredido centenas de voltas sobre ela mesma em que ele sequer pensara em morrer. Na verdade pensava, mas do plano ao ato havia quilômetros de distância que a preguiça sempre colada àquele corpo, que de juventude não levava nada, senão a idade, era incapaz de transpor.

Justo naquele dia, no dia mais frio do inverno, em que ousei esquentar o corpo com aquele outro corpo, que agora jazia pacientemente ao meu lado, este me inventa uma morte assim, inesperada. É claro, a perícia não ousaria me culpar. Minhas preocupações estavam longe disso, confesso. Tudo indicava uma morte natural e tranqüila, exceto aqueles olhos de dor, o olho de quem chamou por alguém e não foi ouvido – se não tivesse já há tempos o hábito de falar dormindo, quem sabe eu pudesse salvá-lo? Acostumada, mesmo que ganisse a morte ao meu lado, eu apenas o sacudiria, imaginando-me boa samaritana por livrar-lhe de um pesadelo.

Mas agora cá estou, afastando as mãos ainda coradas, porém frígidas, de meu abdômen. As unhas roídas denunciam a fragilidade sentida nos últimos dias. Denunciariam, talvez, para um leigo, não a mim, perita naquele corpo. As promessas de parar de roê-las postergadas até ontem – hoje, não as renovaria. Dizem que as unhas dos mortos continuam a crescer ainda, assim como os cabelos. Consternada com o óbvio atraso que aquele cadáver ocasionaria em meu dia, não me resta outra coisa a não ser deixá-lo com aspecto de homem limpo – coisa que, em verdade, nunca foi. Assim, lixo e limpo aquelas unhas imundas e despontadas – tanto as dos pés quanto as das mãos. Uma base traz-lhe de volta a cor às unhas, já arroxeadas pelos inevitáveis efeitos da morte.

Na impossibilidade de movê-lo ao chuveiro, limpo com pano úmido apenas, todas as intricadas curvas daquele corpo. Umbigo, pênis e reentrâncias entre as curvas da barriga merecem atenção especial, pela sujeira acumulada. Retoco o desodorante da axila, apesar de crer que mortos, apesar do cheio ocre, não possui um odor característico desta região. Tesoura em punho, retoco-lhe o corte de cabelo – o qual não mais poderia ser referido como corte, considerando a distância temporal da última vez que aqueles fios viram uma tesoura.

Assim, limpo, em nada lembra o homem que foi. A mim não mais dirige palavras ríspidas, nem sequer palavra alguma. Disco para o hospital e em minutos a ambulância está ali e logo sei que o verei novamente, a mãe em prantos, em seu funeral.

Enquanto me despeço silenciosamente do defunto, tenho uma sensação quase triste que me invade, de que jamais terei tudo. Visto que agora, quando ele finalmente tornou-se o homem que eu sempre quis que fosse, parece tarde demais, e é um carro branco que o leva ao invés de ser trazido pelo famoso cavalo, da mesma cor. Me resta apenas imaginar que as flores no velório são para mim.