9.3.09

LITERAL

Toda a vez que nos víamos era a última. Potencialmente falando. É engraçado saber como éramos felizes, sem que as lembranças consigam ocupar a mente. Sabendo apenas, incapaz de sentir. Àquela época, nos apegamos ao estado terminal profetizado pelo médico. Jamais cogitaríamos a cura – éramos felizes encerrados na pequena ampulheta dos meses de vida.

Ah, você queria viver uma daquelas paixões de livro de poesia barata, com todos os problemas que um problema deveria ter, só para poder chegar ao feliz para sempre. Para sempre era tão pouco já, a felicidade eterna nos era palpável. Eu não acreditava nos acessos shakespearianos, pois o meu para sempre era bem mais permanente e incerto.

E quanto mais a contagem regressiva era contada, mais explodia paixão daqueles poros cuja vida estava esgotando-se. Cada dia uma nova aventura, um novo percalço romântico, uma concretização do ideal a ser lembrada.

Quando faltavam cerca de 30 dias para a data fatídica, ousou, pela primeira vez, não ser perfeito. Jamais saberia explicar o que apossou-se de mim. A utopia havia descolado-se do corpo que tinha sido sua morada durante os últimos meses e agora andava bêbada pelas ruas da cidade buscando outra alma vazia sedenta de vida por esperar a morte.

O último mês transformou-se em dois, e o segundo trouxe um outro e assim a vida permaneceu ocupando aquele corpo que eu já não sabia se pertencia a mim ou ao mundo. E, minguando assim, nos via em páginas de Caio Fernando Abreu, com uma paixonite tão jovem e doente, que desfaria-se no ar.

Não bastou cair - quem foi rainha, dizem, nunca perde a majestade. Continuei ao seu lado, esperando não casamentos, mas funerais, fingindo ainda viver aquele romance bonito, de livro de quinta série. Mas decaía não em qualidade literal do personagem que me impunha, mas como homem real que era obrigado a ser, até que nos vi refletidos em páginas rodrigueanas.

Foi que, então, tomada pelo ópio da humilhação, ousei proferir palavra que quebrasse o pacto do eterno enquanto dure, que já não mais era real - éramos literais sempre. Foi de um adeus gélido a última lembrança. Porém, a tristeza inocente de que sua morte não tardaria – o último mês multiplicado em 10 já – me apossou.

Dias e dias, que noites já sequer sei se haviam, visto que era sempre dia dentro de meu apartamento, luzes acesas, janelas fechadas, passei assim. Na calma agonia de quem aguarda o fim. Ainda nunca usado o vestido que escolhemos juntos para que eu usasse em seu velório.

Quando as amigas souberam do ocorrido lamentaram nossa vida sempre tão teatral. Os personagens que dele foram feitos não dependeram apenas de sua cabeça, mas havia um diretor regendo tudo aquilo, e a notícia desta orquestra estampava os jornais há meses. Alienada que estava em nossa arte da vida, incapaz de ver qualquer realidade em noticiosos tais. Mas da boca de uma delas, veio a notícia da cura, para me atormentar.