24.9.07

POST IT

Post it colado no computador e a mesma indecisão tomando conta, como de hábito. Mas ligo – ela sabe que sempre vou ligar. Convida pra cinema, não quero. Jantar, também não. Aceito um chope, sem deixar que ela insista. E vão-se vários chopes, não só aquele combinado.

O jeito cult de riso solto cativa, mas não me deixa apaixonar, que por trás dos dentes brancos sei que tem um milhão de problemas. Esqueço os problemas que não quero para mim, e ela finge esquecer de novo, enquanto estamos juntos. Ela bebe mais que eu, de fato. É mais inteligente, e banco o intelectual pra impressionar, mas não impressiono. Está acostumada com caras assim, bem sei.

Dessa vez não conta da nova matéria no jornal, da exposição de fotos que vingou ou da viagem ao México, que fará semana que vem, como era de costume ouvir daquela boca que eu conhecia tão bem. Diz que vai se despedir, passar um mês longe, ou mais tempo. Não pergunto o porquê, ela também não diz. Pede que não espere voltar, mas sei que fala isso porque conhece minha rotina ridícula e sabe que a minha escolha é apenas esperar por ela or waiting for her – e meu inglês é ruim. Na dúvida, escolho todas as opções anteriores, e sei que faço a escolha certa, como nunca faço.

Chego em casa com a ressaca do desalento pulsando a mente, mas não sei. Não sei mesmo bem o que fazer, só fico ali olhando o quadro comprado no bazar da esquina, que não combina com o apartamento pintado de verde e sei que ela faz falta agora para criticar meu mau gosto e vai continuar fazendo falta como sempre fez em suas longas ausências.

Tomo o banho gelado que é o único disponibilizado por meu chuveiro estragado hoje. Ela vai e não sei para onde, não sei o porquê. Mas nunca me adiantou saber nada disso. Ela mudava de vida como quem troca de roupa e a única segurança que tinha era eu, esperando sempre no apartamento minúsculo, mais por solidão do que por gostar dela.

Mas o telefone toca e a voz de mulher do outro lado da linha não é a dela, como de costume. É alguma voz do passado, que eu sequer tinha lembrança, mas lembrou-se de mim. E ainda há espaço para outros chopes, talvez cinema e janta também, penso. Enfim, corto um pouco da única estabilidade que ela ainda tinha na vida, e decido brincar de ser outro, para fingir que sei não ser dela.

17.9.07

AQUELE ÁCIDO

Olhou e perguntou quem era, já sabendo que aquele ácido corrosivo e repugnante corria novamente pelo seu sangue. E deixou o ácido andar, devagar, tomando conta de todos os órgãos, numa metástase louca à qual já estava acostumado bem. Assim, totalmente consumido pelo tremor nas mãos, alucinado com o pulsar acelerado do coração, que lembrava tambores carnavalescos, em plena euforia, olhos estalados, não de cimento e ódio, mas de paixão.

Sorriu devagar que era, puxou-a pela mão e fingiu que dançava um tango, mas nem dançar sabia. Ela riu um riso solto, que ele provocara com a ousadia de ousar fingir dançar um tango. Constrangeu-se, mas pediu um martini seco e entregou-lhe na mão esquerda, como um presente inocente. Mas foram tantos martinis secos que convenceu-a a não rir mais dele, mas com ele, e foram juntos rir longe dali, em um lugar mais reservado.

E o ácido que lhe corria as veias misturava-se com o martini que corria nas dela, e juntos transformavam em um energia que ele já sentira outras vezes tantas, e mentira todas vezes que era a única, e agora mentia também que estava sentindo pela primeira vez o que sempre sentia. Ela, acostumada a ouvir o que sempre ouvia, inflou um pouco o ego e fingiu não acreditar, já acreditando e traçando planos para o futuro.

Mas o futuro também lhes corria as veias, que todo futuro um dia chega. E eles eram ali, como sempre fora para ele, e, para ela, que sempre acreditou, nada fazia sentido, posto que o futuro começou antes do presente acabar, mas o que veio não era o planejado por ela, e sim outro, que ele idealizou. Ao acordar, a cama estava vazia.

10.9.07

3 ATOS DE AMOR

ATO I - O INÍCIO

Ele disse que ia ligar, e ligou. Mesmo bêbado, não esqueceu o telefone - tinha anotado disfarçadamente no celular, sem nenhum nome, pois nem lembrava. Trocaram clichês e carícias incontáveis.


ATO II - O MEIO

Ela achou que dessa vez ia ser feliz para sempre, mas errou. Depois de um mês ele ensinou para ela o significado da palavra ciúme, e ela lhe demonstrou como os hormônios afetam o humor feminino. E, juntos, treinaram todo seu vocabulário de xingamentos e escatologias.


Ele aprendeu com ela a trair, e gostou. Enganavam a si e ao outro, para fingir que tudo era perfeito. E não desistiam de levar a vida juntos - e junto a outros. Faziam planos para o futuro já com a tristeza antecedente de pensar na companhia do outro.


ATO III – O FIM

Ela acostumou a chorar, e acabou. Sabiam que juntos tinham construído castelos de areia sobre as nuvens, e agora chutavam os grãos. Os porta retratos na sala traziam agora retratos de um passado que não queriam retratar. Enfim, veio o fim, para recomeçar.

3.9.07

RAÍZES

Desço as escadas correndo, puxo do pescoço o cartão ponto e passo na roleta, rumo à liberdade. Atravesso a porta apressado e sinto o vento de início de noite bater no rosto, enquanto puxo do bolso a carteira de cigarros. Constato que só tem mais um na carteira que jogo fora. Puxo também o isqueiro, do outro bolso, e acendo o cigarro. Fumo e me sinto mais livre, por ter a liberdade de poluir meus pulmões, em troca do tempo que passo com eles presos dentro do corpo e o corpo preso no trabalho e o trabalho preso nessa cadeia da sociedade atual, e me encho de filosofia e fumaça baratas.

São oito quadras até o restaurante onde ela me espera. Vou a pé, pois o carro estragou há três meses, e o salário não ajudou a pagar o conserto. Uma quadra, duas, e paro. A perna não obedece mais, não quer caminhar, teimosa. Insisto, puxo do chão, mas não levanta. Não tenho mais cigarros no bolso, para me acalmar, então não acalmo. Faço força, peço, imploro até, mas o músculo não quer saber, finca não chão e teima em não sair do lugar. Peço ajuda da outra perna – a esquerda sempre fora mais simpática – suplico que as mãos me dêem uma força. Mas nada adianta. A perna não sai do lugar. Resolveu se aposentar, de uma hora para a outra, e não tem súplica que consiga dissuadi-la da idéia.

Acalmo, após duas horas, que é o que resta, mesmo sem cigarros. Ligo pra ela, mas não atende o celular. E se eu dissesse que a perna não obedece e por isso não iríamos sair mais, acho difícil de ela aceitar. Nunca ia querer um homem cuja perna direita se aposentou. Ninguém iria, por sinal. Me contento e durmo, em pé ainda.

Acordo com o João ligando, pra marcar o futebol, na quarta-feira. Não vou, a perna direita não presta mais. Ele insiste, acha que é desculpa. A perna não mexe, impossível. Explico tudo, até que ele se convence, e combina de ir levar alguma coisa para eu comer, porque o estômago ronca. Peço cigarros também. Ele aparece, conversa, faz companhia. Tenta ajudar a desemperrar a perna, mas a diaba não quer saber. Vai embora e me deixa ali, que não pode fazer mais nada por mim, mas promete levar sempre comida e cigarros.

Vou levando a vida normalmente, mesmo tendo sido demitido após uma semana sem aparecer no trabalho. Me habituo a nova rotina, tendo como maior aliado o João, que ainda leva comida e cigarros diariamente, no intervalo de almoço. A vida parece mais simples quando você pára de andar. Não há mais preocupações: tudo se resume a respirar.

Um dia acordo com um cachorro mijando em mim, e vejo que meu pé criou raiz. Não só o direito, mas o esquerdo resolveu imita-lo agora. Tento ver as coisas pelo lado bom: com raízes, facilitava ainda mais a minha vida, pois conseguia retirar alguns nutrientes do solo. No mesmo dia encontro a mulher que deixei esperando no restaurante e ela me conta que está saindo com o João. Faço papel de palhaço, prezando pela sobrevivência, e finjo que não sei de nada. Tem dias que era melhor não existirem.

Um dia o corpo começa a tomar forma concreta de vegetal. Crio casco feito tronco ao redor do corpo, e me saem folhas nos braços e cabeça. Tudo me conforta, pois agora não há mais necessidade do João a me trazer comida. A fotossíntese me livra da dependência dele, e agora só preciso do sol. A cada privação que me é imposta, sinto a sensação de ser mais livre, porque distante da vida. O João já não reconhece mais, a mulher do restaurante me ignora, como sempre ignorou.

Não há mais escadas, cartões pontos, roletas, portas, trabalho. Não há mais mulheres, amigos, futebol. Não há mais perna, braços ou coisa qualquer que lembre humanidade. Simplesmente não há. E sinto-me livre agora, de uma forma que nenhum homem jamais experimentou. A liberdade é ter raízes.