8.11.10

O PÁSSARO

Deixava sempre a janela aberta para ouvir. Sabia que, pela manhã, as ambulâncias se confundiriam com cantos de pássaros. Gostava, sobretudo, da discrepância e de, às vezes, amanhecer imaginando que vida aquela ambulância buscava, ou qual morte estaria anunciando. Quando satirizavam seu peculiar gosto pelo sangue alheio, calava. Era apenas uma forma de enxergar as coisas, quase um daltonismo. E sempre havia um ou outro pássaro anunciar que não só de humanos se faz o mundo.

Aquele foi diferente.

Entrou desrespeitoso através da janela e posicionou-se a seu lado. A asa manchada de sangue. Tentou enxotá-lo, para que voasse de volta à rua, à rua que era seu lugar. O pássaro, penas amarelas com a mancha vermelha denunciando ferida, negou-se. Teimou ficar ali com ar imponente de quem exige ajuda.

Ela, que desfrutava ao amanhecer de seu canto, a embelezar as sirenes, não poderia hoje, por obséquio, levá-lo a um veterinário, fazer um curativo naquela asa? Não. Tinha pressa, e apressada foi ao trabalho, ao dentista, à academia, para então voltar a noite e vê-lo novamente ali, sustentando o silêncio, como em greve de fome.

Tratou de pegar o pássaro e colocá-lo para fora de casa, com as próprias mãos - lavadas em seguida e desinfetadas com álcool gel. O bichano já estava lhe sujando a casa de sangue e teria que chamar a faxineira tão logo fosse possível. Para que não entrasse mais, fechou a janela. E estava cansada, e casada dormiu, porque na manhã seguinte tinha pressa, que ir trabalhar, passar na estética, pagar aluguel.

Quando chegou em casa, o pássaro permanecia em frente a janela, as penas cada vez mais perdendo o tom amarelo para o vermelho. A falta de canto não lhe era mais protesto, e sim, talvez, única escolha. Se apiedou do animal e deixou-lhe entrar novamente. Não era comum tamanha dedicação.

Assim que cruzou a linha que divide a rua da casa, deu um último silvo, que confundiu-se com outra ambulância, que carregava vida ou morte humana, e desfaleceu.