31.12.07

POÉTICA

99

o ano tinha passado
- mais um ano tinha passado
99 nove velhinhas, contou

quando não acordou
havia uma a menos



parque eólico

geradores de energia
ou cataventos gigantes?


para entender o poeta

escreve o corpo
transforma em alma

24.12.07

LÁGRIMAS

Deu pra ele? Não tinha dado nem pensado em qualquer coisa do gênero. A mão não passou da cintura, a idéia não passou pela cabeça. Tudo exatamente como há anos atrás quando éramos algo ainda um para o outro – se é que fomos - como se o que vivemos tivesse valido a pena. Valeu? Talvez fosse a cerveja, talvez nem fosse eu e nem ele era, mas o fato é que foi feito e agora sobrava o gosto do arrependimento, o olho desviando a resposta, a mente formulando uma verdade sutil de ser dita, que não soasse a desculpa – não tinha desculpa, eu bem sabia, melhor era apenas dizer que tinha acontecido, mas que nem tudo tinha acontecido.

Vejo a pupila dele dilatar, tem um brilho no fundo que finge não importar, mas ele se importa e cala, como sempre calou. Me dá um beijo manso pra passar a sensação de que não vai mudar nada, mas eu sei que sempre muda. Vai no banheiro e demora, deve ficar pensando no sentimento que não sinto. Eu não penso, não consigo mais pensar. Ele volta e abraça, abraço também. Ficamos em silêncio pensando no outro, ele pensando num gosto de traição que não existiu, eu tentando não lembrar que foi ruim, como sempre era ruim lembrar do que não se quer.

As lágrimas apostam corrida até o chão.

17.12.07

VOAR

Por saber que o sentimento era tanto e quase real, aprendemos a ser livres como nunca seríamos – nunca fomos ou soubemos ser, antes da certeza de que aquilo pertencia a nós tanto quanto nossos corpos nos pertenciam. Acreditando no que não tínhamos provas só provávamos que sabíamos viver essas coisas abstratas que nunca entendemos. E os outros olhavam-nos desconfiados, que nunca entenderiam o sentido da nossa ligação – éramos jovens, éramos sãos; mesmo assim não nos compreendiam.

Os outros estavam trancados e não havia coisa alguma que fizéssemos para que fossem libertos, pois nem queriam liberdade, que a prisão em que viviam era para eles segurança e estabilidade, sinônimo de vidas rasas e estanques. Fingimos saudades da época em que não éramos e vivíamos assim como todos, suportando o que acreditávamos ser suportável e andando com o rebanho manso em direção a um futuro morno.

Criamos uma fogueira com todas as vaidades das quais nos despimos e fizemos exalar o cheio convidativo da vida pela cidade afora, tentando arrecadar mais alguma alma que se dispusesse a tentar voar conosco, seguindo alguma estrela perdida no céu, que pudesse guiar melhor nossos olhos e fizesse deixar de pensar. Largamos idéias e ideais que cultivamos tanto tempo em vão e tornamo-nos leves - o corpo perdendo a densidade, a gravidade esquecendo de agir, o vento brincando de deus, conduzindo-nos como pequenos objetos sem vida.

Rimos um sorriso cúmplice, de quem acredita no que ninguém acreditou e descobre estar certo. Nosso segredo eterno ditava que voar era tão simples e teimávamos em segurar ao chão, prender-nos à corda, não ser, fingíamos ser dom dos pássaros, sem saber que sempre tivemos asas. E aquele sorriso duplo e verdadeiro que saiu do chão como nós e entregou-se às asas do tempo, sem preocupar-se com tempestades ou secas, fez-se música.


E ecoamos.

10.12.07

LEAD*

Quando cheguei, ela estava de malas prontas e maquiagem borrada. Fui buscar uma cerveja na cozinha - se pedisse para ela ficar seria pior. Fechou a porta com uma batida forte, para que eu ouvisse que ela tinha ido embora. Mas era como cachorro manso, voltava sempre pra casa um dia, chorando mais do que quando partira.

E deslanchava, ainda chorando aquele choro infantil que as mulheres teimam em conservar mesmo quando adultas. Contava entre soluços, mil o quês, quems, quandos, ondes e comos que não me pertenciam. Faltava para ela os porquês, que nenhum de nós dois ousava adivinhar. Mas nem tudo na vida tem seu lead definido. E ficamos sem porquês, sobrevoando em torno de nossas dúvidas e da confusão que reinava nela.

Mas agora o relógio girava vezes contínuas, e mais de vinte voltas os ponteiros completaram, brincando ao redor da circunferência pontual, e ela não havia aparecido. Não houve vestígio dos passos silenciosos na sala ou da voz suave que me acordava durante madrugadas aflitas para que matasse um inseto qualquer que teimasse em nos visitar.

Agora os porquês pareciam cada vez mais distantes - faziam falta. Talvez ela fizesse falta e a sua manifestação mais óbvia fosse a necessidade que sempre tivemos de não comentar os porquês. Uma vontade incessante de nunca entender o contexto, não chegar ao resultado final - teimávamos em ser supérfluos. Era o lead inteiro agora que faltava e me deixava sem norte e fazia fraco e umedecia a alma de forma que não entenderei.

A energia que envolvia agora era um misto de nada que eu era incapaz de entender, pois sempre fora incapaz de entender tudo até que ela chegava com seus o quês, quems, quandos, ondes e comos.

Agora, eu era sem lead e sem ela. Notícia, sem informação.




* pra quem passou longe de alguma aula de teoria do jornalismo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lead

3.12.07

DEJAVU

Outra vez a mesma língua. Gosto azedo de passado reciclado. As mesmas palavras cheias de curvas para eu me perder. O mesmo carinho insensível que sempre me presentearam aquelas mãos. Os mesmos talvez, sims e nãos. Um dejavuè de sentimento que fingiu que acabou.

Burra. Diz que gosta agora. Diz de novo aquele milhão de carinho vomitado. Diz. Diz que ficou mal e vai ficar de novo, essa e todas outras vezes que quiser lembrar. Diz que chorou, ligou pra mãe, faltou o trabalho.

Admite que quer ser feliz pra sempre. Aceita que tem medo do futuro. Que sonha com um casal de gêmeos morenos de olhos azuis. Fala dos outros tantos corpos ocos que o substituíram nesses anos. Fala do abutre persistente que ele sempre foi em tua vida. Fala da carne, da carniça. Fala dos podres, do cheiro invasivo das mentiras.

Não, não fala nada. Não chora de novo. Não pede pra voltar. Finge que nem quer. Ensurdece esse teu olhar-paixão. Cala. Deixa o silêncio berrar nas paredes mofadas. Abstrai as traições, os traumas, os tapas. Pára com a auto-tortura que a ferida ainda brinca de sangrar. Esquece os bons momentos. Lembra todos os tormentos que foi capaz de aceitar.

Amacia. Beija o desgosto daqueles lábios imundos de saudade. Abraça o corpo que logo te larga. E cospe.