21.7.08

SER SÓ

Brincou de esperar uma, oito, e mais vezes. Fingiu latejar o coração. Mentiu amor. Era pra ser caso fosse, mas não sabia e insistiu escrever recados para ninguém e saber que enviaria um dia. Pintava corações e preenchia com nomes que nunca fizeram parte dela. Contava às amigas aventuras amorosas que surgiam no exato momento em que eram narradas, mas a dor que havia era muito anterior.

Chorava encolhida na cama fingindo saber por quem sofrer – e, num ataque, rasgava todas as correspondências nunca recebidas, jogava fora as flores que ela mesma havia arrancado do jardim e jurava nunca mais amar alguém novamente. Tomava remédios, dizia suicídios aos familiares, escrevia cartas a todos que a fizeram sofrer e ela sequer sabia quantos e quem eram.

Mas acordava renovada e com novos nomes calcados na mente, como que um outro amor tivesse surgido naquele quarto escuro em que não conhecia ninguém. Presenteava-se então com todo carinho do mundo, muita vaidade e algum sorriso escondido. Mas o momento romântico durava apenas até que surgisse, num repente mais rápido que a paixão, o próximo colapso.
De tanto fez e jurou que cansou de acreditar no que nunca havia sido. Aos poucos aprendeu solidão.

Jamais entendeu que só amava o amor.

14.7.08

CONSERTO

Jogou a mochila nas costas e foi embora descrente. Bateu a porta, com a certeza absurda – tão absoluta, absorta em si – de que jamais colocaria as mãos naquela maçaneta e os pés no carpete encardido de ciúme lamacento. Entrou na profusão de cores caleidoscópicas que o coração mandava, fundindo o real num berro infinito, que acabou.

Nas escadas, ainda indecentemente triste, via tempo jogado no abismo, e o quanto humilhou saber não ter sido sempre e sempre e só o único. Chamava infernos inteiros àquela que nunca o traiu, embora tivesse ousado pensar. Planejava mortes inexeqüíveis, equações mal resolvidas, pousava a cabeça num mundo distante em que só o que vivia era a raiva.

Vomitava palavras de repulsa e agressividade. Impossível olhar para os lados ao atravessar a rua com tanta lágrima e sem pára-brisas. Maldizia todos que pensassem atropelar os outros e não a ele. A morte não era angústia, mas único objetivo perseguido por esquinas e quadras dali. Que ela sentisse remorso, que soubesse que foi tudo culpa dela ao vê-lo no chão, órgãos estilhaçados, tudo regado a um sangue quase morno, requentado em ódio.


Em casa, sabia todo o teatro inventado na cabeça dele. Entendia todas as ações dramáticas recriadas meticulosamente de qualquer enredo barato – e gostava. O drama fazia-o frágil, como jamais mostrava-se. E o conserto, mesmo que ele clamasse impossível, era simples telefonema e palavras bonitas. Sempre voltava, nariz e olhos vermelhos, ainda com cheiro de raiva, mas domável como uma fera circense.

O teatro só servia para amainar as coisas, no fim. Eram dias de tédio, então, até a nova explosão de ódio latente, que sempre vinha e repetia-se e repetiria mil vezes até que um dia fosse real. E aquela era talvez a maior alegria que tinha, saber consolar, dar riso à raiva, tirar da espuma que lhe escorria a boca um beijo seco e sincero, de tesão incorrompido. E era só assim, depois de tanta inconformidade inverossímil, de tanto ciúme pelo dito e não feito, que enfim transavam, degelando o peso dos anos.

7.7.08

UM MUNDO NANICO

Após tambores rufantes, bailarinas em transe, espetáculos pirotécnicos e aplausos efusivos, a saída de emergência pisca sua luz vermelha para a retirada das tropas. Todo aquele palco perfeitamente preparado para a perfeição, artistas em seus postos, ensaios e descenas, tudo montado para uma platéia falsa pronta para ilusão – acabou.

A luz do palco não acende, a lona do circo murchou, o palhaço mostra rugas de insatisfação na cara despintada – despeitado! –, a única magia que o mágico lembra agora é o truque de sumiço, sua assistente, há pouco cortada em duas, pega a bolsa e vai embora, tão ou mais inteira do que quando havia chegado. Os tigres e leões adestrados tornaram-se indefesos animais de estimação. A corda bamba, em protesto, não balança mais. Equilibristas se desequilibram nos percalços dos paralelepípedos da rua.

No silêncio, uma coruja aplaude ao longe o espetáculo findo através de seu som característico. O público não lembra, sorriu, mas o riso ficou no travesseiro, em apenas mais uma das longas noites dormidas. Todas as vidas transformadas em magia, beleza em movimento, corpos treinados para voar por algumas horas – depois, era manter o pé no chão e a cabeça na estrada.

Em um tempo fez-se a festa debaixo daquela lona, agora eram vidas perdidas, vagando cada qual em seu rumo, não mais transformar aquelas vidas em palco. Era agora tudo simples, só viver sem saber exatamente qual é a vida que cada um tinha. Era tudo separado, não mais a coisa única que foram.

Naquele picadeiro abandonado, ninguém lembrou que o anão via um mundo.