14.2.11

100 METROS DE UMA CIDADE QUE NÃO EXISTE

Chegava a noite e a rua tomava forma na sua escuridão, aquele monótono café à direita, cujas 3 mesas estilo bistrô alto na rua permaneciam sempre vazias, um pouco a espera de que eu adormecesse para poder visitá-las. Aos poucos, virei assídua daquele café, aquela rua cujo único sinal de vida era o jacarandá, bem onde ela fingia terminar, para então virar à esquerda e ser outra coisa. Por três meses fui assídua desta minha Buenos Aires particular, que se resumia em uma rua e nenhuma expectativa. Chegava por volta das 2 da manhã e sentava-me na mesma mesa da rua, a do meio sempre, admirando o jacarandá já com saudade da cidade que não é mais minha, e ia embora antes do amanhecer, quando despertava inundada de suor e preocupações.

Era uma destas ruas escuras de uma Buenos Aires que quase já não existe, destas que não estão nos mapas e que de tão silenciosas são evitadas pelos carros. Mas a Buenos Aires que encontro todos os dias ao ir pro trabalho não possui ruas que fingem acabar e os carros não perdoam o silêncio, estraçalhando-o sem perdão. É uma cidade de inflação e transito, como estas que se vêem nos jornais de domingo.

E justo num domingo destes de sol em que velhinhas levam seu podle para passear na praça Congresso, estava eu em uma de minhas fugas rotineiras, caminhando. caminhando. caminhando. Se há algo de exato aqui, é caminhar. Horas de ócio e suor sem destino até que a rua interveio em minha caminhada. De repente, ela estava ali a apenas 500 metros das hordas de turistas que poluem San Telmo, com uma cor de 5 da tarde; mas uma cor de 5 da tarde no inverno, claro, porque anoitecia. Estava ela e seu café e seu jacarandá solitário e suas mesas livres como que a minha espera e quase fui, mas sentar ali ia ser um desrespeito àqueles 100 metros de uma Buenos Aires que não existe. Sequer me aproximei a recorrê-los. Era tarde, não porque anoitecesse, mas era tarde, e não a vi mais.

Há cerca de um mês comecei novamente a realizar expedições noturnas, após o cerrar das pálpebras. Uma vez por semana me encontrava em uma praça, destas praças de língua espanhola, que trazem em si mais concreto do que árvores. No centro dela, em meio a uma encruzilhada, uma estátua verde; um homem montado em seu cavalo, provável herói patriótico. Dali sei que posso caminhar um pouco e estarei na praia, uma praia suja na qual banho apenas os pés, carregada ainda de um pouco de novo, acrescido da vontade de molhar-me, porque me parece sempre um destes lugares que chegam em silêncio para me invadir.

7.2.11

CENA RÁPIDA

comecei a desconfiar daquele jeito desprendido quando vi que não provava o molho antes de misturar com a massa; esse jeito de se jogar no abismo que carregava mesmo nas coisas mais banais.

(eu sabia o perigo que havia por trás daqueles olhos claros de fogo)

cortou meus pensamentos com seu ar de ignorância superior:

- Hamlet, é Shakespeare, né? ao que respondo com um aceno de cabeça Se tu soubesse quanto valem as coisas que eu não sei, riu.

(eu nunca subestimaria o valor de suas pequenas ignorâncias)