28.12.09

A TERNURA DESTA AGÚSTIA

Não conta pra ninguém que por baixo dessa carcaça eu sou mais frágil que cristal?
Finge não ter percebido essa minha mania de ser sempre sim
Afoga essa mágoa comigo e que o dia amanheça só amanhã
Brinca também de rir junto que desgraça acomete todo mundo
Na ternura desta angústia dançaremos uma valsa em segredo

Silêncio, eu digo.
Ninguém saberá que somos apenas cacos de nós.

21.12.09

TEU OLHAR INQUÉRITO

Me abraçaste com esses olhos que tu tens de me pedir que te pergunte como foram teus dias, o que fizeste e com quem andaste. Me fita em silêncio esperando o inquérito ao qual devia estar acostumado antes de me conhecer. Exala timidamente uma vontade de contar verdades talvez dolorosas, sem saber quão invasivo seria contá-las antes de ser contestado.

Eu não queria essas verdades. Não vês? Já poluem um terreno paranóico em minha mente histórias sobre tuas companhias que fariam inveja aos teus amigos mais próximos.

(Na verdade, a verdade-fato não me interessava posto que formulasse as piores teorias sobre ti)

Mas talvez aquele teu sorriso inquérito fosse apenas uma vontade de mentir. Dirias que dormiu cedo e só, caso eu perguntasse. Usarias esse lado teatral que usas para dissimular todas as pequenas verdades que omites. Quisera tu testá-lo em verdades maiores, por isso me interroga agora, querendo que pergunte como foram tuas noites.

Mas tu perguntas então como foram as minhas - se eu trocara a insônia por outra companhia.

Culpa minha. Omiti a informação mais preciosa: uma paixão-lacuna sempre me exigiu outros corpos para ocupar o vão.

14.12.09

DATA

A data ecoou na cabeça novamente. Sabíamos que até aquele dia tudo deveria estar definido. Nos olhamos e, enquanto tenho medo de fugir, também me dói ficar.

A gente range o dente, mexe no cabelo, rói a unha. A gente sabe que não há nada além daquela fronteira, além de outras fronteiras. Todas linhas imaginárias interpondo-se às nossas fugas. Não sabíamos que a última fronteira era a nossa, vergonha de saber que também possuíamos nossas próprias linhas imaginárias.

E víamos de novo aquela data a nos dizer que nosso destino está ali, a nos tentar, construindo e desfazendo sonhos como quem dorme um sono tranquilo de criança.

E dizíamos que não, ou talvez, que não sabíamos, nunca saberíamos. Me olhava com cara de dúvida sem entender a interrogação daqueles números que se impunham entre nós daquela forma quase fictícia - me olhava assim por não entender tudo que a data significava e saber que só alcançaria tal entendimento se acreditasse, mesmo sendo incapaz. Mas eu sabia.

7.12.09

PASSO DESPIDO

Fechei o portão e com ele ia um adeus que tardou a sair. Não pronunciado, mas presente naquele último olhar, que era talvez o primeiro de tantos últimos olhares que viriam, mas seria sempre o mais definitivo entre estes.

Não sei, a vontade é de sorrir agora. Eu não vou olhar para trás, mas sinto que a porta ainda não fechou as minhas costas; que ainda tem um olho que me segue. Mas meus passos são leves, como passos de quem tem certeza. Passo despido do peso azedo das palavras não ditas. Pronunciadas, deixo-as presas atrás das grades daquele portão.

Agora que vomitei em ti todo esse querer, que desatei o nó do peito, essa vontade soa estranha em mim, como se ela jamais soubesse fazer parte de mim (como se não fosse minha hóspede nos últimos meses) - é apenas uma vontade que anda em silêncio ao meu lado, sem me pertencer.


- ah, aquela vontade caçula, mimada, mimada, que cantarola agora uma melodia que não conheço e sorri com desdém, como soubesse não ser mais minha; ela caminha no mesmo passo que eu, numa dança ritmada ao som daquela melodia que não conhecemos; somos paralelos e não nos tocaremos mais, eu digo em seus olhos -


Não vejo, mas sinto a porta fechar. (eu não vou olhar para trás)

30.11.09

CAMISADEFORÇARESPEITO

Eu estava há duas semanas sem escrever; e quando não escrevo você sabe; eu piro. você sabe porque também é assim; nossa expressão é mútua, e de repente somos iguais. Se nossa vida cruza em escrita, na falta dela não pode ser diferente. Teu gosto conhece o amargo estanque da não vida que experimentei nestes dias? Não é culpa tua. Não é culpa minha. Cúmplices, somos inocentes; tu sabe disso. Nós precisamos mexer as peças desse tabuleiro imperfeito. Corromper as regras que não aceitamos. Usar o fio da verdade estilhaçando hipocrisias. Berrar; Vomitar; Sangrar; e assim sucessivamente em frases que se confundam.

Pra sobreviver a gente se contém e joga a culpa no eu-lírico, e o eu-carne mantém sua inocência quase infantil de palavra serena e diplomacia. Mas é que quando a palavra não nos visita nós sabemos que é hora da camisadeforçarespeito romper. E lá vai toda enxurrada de nós.

Me dá um papel, minha alma começa a formigar.

23.11.09

MINGUA

Vê? A lua está minguando e fazia tempo que não ventava assim, pleno novembro, e tem tanta gente na rua, mesmo com esse vento e aquele cachorro com jeito de quem quer morder. Tá quieto hoje, fala alguma coisa. Lembra quando a gente se conheceu? A lua estava cheia; foi há umas três ou quatro luas cheias atrás. Não, foram três, eu lembraria se fossem quatro. Calma, o ônibus não deve demorar. Sabe, eu acho mesmo que esse vento e essa lua assim, perdendo espaço no céu, são um sinal. Sim, eu sei que toda lua mingua, mas de repente esse teu silêncio - não sei, só de repente fosse um sinal. Ah, tu sempre diz que não te importa e se importa com coisa tão pequena. Isso a gente resolve em meia hora; ou não, claro. Mas entende que a solução somos nós, não é como aquele cachorro brabo ou esse ônibus que não vem: tem essas coisas que a gente não controla. Eu queria, por exemplo, encher de novo essa lua como se fosse um balão de festa infantil; um balão surpresa e fosforescente, como toda lua cheia.

Eu queria ser dona desse teu silêncio.

16.11.09

LUA NOVA

O centro da cidade tá escurecendo. Mas tu entende? Entende mesmo? E quando eu vim parar aqui eu era lua cheia.
Tudo que eu disse-quero, eu tive.
Tudo que toquei foi ouro;
tudo que olhei foi meu.

Olha agora essa lua disforme surgindo na nuvem.

Nem cheia, nem meia, nem nova.
Não saberia dizer, lua morna.

Mas tu entende porquê não dá certo? Eu era agora, desperta, desesperada. Puro fogo.Mas de repente fui minguando nessa obsessão de ser tudo como se as partes fossem caindo devagar, mas rapidamente. Como quebrasse um vaso de cristal puro e, conferindo os restos, só houvesse vidro.

E eu perdi meu nome
meu norte
meu nada.

Entende? Tudo nessa velocidade atemporal, das coisas velozes que passam em câmera lenta. Assim, semi-nua
meia-lua.

Fui perdendo cabelo
perdendo tesão
perdendo dinheiro.

Pendendo tudo - perdendo tu.

Mas deixa, está escurecendo e tens que voltar pra casa. Tens que enviar aquela carta prometida para ella, em que falará que estoy bien y no te olvidaré, usando as parcas palavras do teu portunhol. Teu desejo é assinar a carta dizendo saudades!, mas para que ela te entenda, dirá apenas te quiero! Vai. Anoitece. A distância não permite desculpas, não perdoa atraso. E tua sombra, alta e esguia, como só a sombra dos homens baixos e opulentos se permite ser, se distancia, a passo largo.

No caminho, aquela dor de ter me feito triste se confunde em náusea com essa coisa de verdade que tu sente. Entende porque não deu certo? Não te preocupes, a escuridão do centro me protege ainda. E ela quem me ouvirá dizer, de mãos dadas com o vento, que hoje eu sou lua nova. (Mas acho que prefiro mesmo que tu caminhe as próximas quadras com esse remorso de mim, que perca o sono em desculpa). Que entendas estes pequenos milagres: o centro está escurecendo ao meu redor.

8.11.09

FRAGMENTOS DE UMA SEXTA PASSADA

Primeiro foi teu rosto assim, essa boca semicerrada, depois flanando pelo teu peito nu, com medo de saber o resultado de outra sexta-feira.

Não. Antes da visão eu era olfato, tateando os sons do quarto com repulsa. Aquela música azeda, agridoce, misturada ao sonoro cheiro do teu sono pesado. Foi assim que acordei e mirei primeiro tua boca, depois o peito nu.

E o calor e tu e o som e meu estômago ainda, não me deixaram dormir.

Se princípio eu não soube o que fazia ao meu lado, ao abrir os olhos em grande angular eu vi que aquele não era meu. O lugar.

De repente aquela noite toda veio junto numa queimação. Quase meio dia e me desfiz num vômito de ti, daquela sexta-feira. Já era sábado, embora eu não tivesse visto o sol ainda. Tanta lágrima jorrada, tu vê. Mas tu não acorda ainda. Eu não sei se foi desperdício.

A lua cheia só chegará na segunda. De repente não entendo esse sentimento jorrado palavra solta.

Eu não sei se foi desperdício, mas tu não acorda ainda.

2.11.09

TODO FALSO AMOR

Será estranho sentir saudade de quem mal conheço?
(Não, já senti milhares disso antes
Todas as vezes tão intensas quanto esta
Tantas me produzi, maquiei até, por ti
Mas não só tu.
Corpos, todos eles semi desconhecidos
Poluindo minhas horas e meus poros maquiados)

Nas rugas precoces, todo falso amor me ri.

25.10.09

MARIPOSA SETEMBRINA

Toda paisagem carregava o mesmo gosto insosso de rotina encruado à visão. E as segundas eram iguais às quartas que, por sua vez, assemelhavam-se aos sábados. Mesmo o rio conservava nas entranhas a essência do asfalto. O pôr do sol mostrava-se tão desgostoso quanto a chuva, naquele setembro. O equinócio, ao fim do mês, caiu-lhe perfeito, visto que todas suas noites e seus dias haviam sido iguais.

Os bichos da seda chegaram em silêncio numa terça-feira, que tanto poderia ser terça quanto domingo. Traziam no corpo a mesma ausência de cor daqueles dias setembrinos. Sua presença não era acaso, tínhamos a incumbência de cuidá-los até que, feitos casulo, se metamorfoseassem em mariposa. No momento, éramos uns tão larvas quanto outros – eles tinham na transformação uma imposição natural; a nós cabia ainda descobrir como sair do casulo.

Mas estes foram apenas mais um pedaço do cenário daqueles dias empoeirados. Não devia me ater tanto a isso. É que pela manhã o cheiro do tédio me acordava e fazia companhia horas adentro, até que era tempo de dormir de novo, sem saber onde gastei aquela fração de vida. E só o que me lembrava ao longe um sorriso eram os bichos, cuja companhia silenciosa distraía a solidão.

Mas tu não ia entender o que quero dizer. Acho mesmo que talvez eu não tenha entendido também e apenas poetizei demais para encobrir minha ignorância. Mas é só assim que sei descrever aqueles dias, como alguém que não viveu: um observador atento e daltônico de um tempo vazio.

Desculpa, eu não deveria ter dito nada disso. Eu deveria virar mariposa.

18.10.09

PRENÚNCIO

Eu não estranho que aqueles três dias tenham ficado em minha mente como se fossem o prenúncio de algo. É como se fossem os três primeiros dias de uma coisa maior, mas foram apenas.

Volto pra casa ainda sem saber como tu tira tanta coisa da minha boca. Era pra sair só saliva, mas vem junto todo aquele sentimento, aquele xingamento, aquele não entendo.

Num abraço me desarma e ninguém mais consegue isso – e nossas cabeças fazem que-não-que-não, mesmo que já não saibamos ao certo qual destino negamos.

Então me olha e não se de onde tira esse olhar abraçado, que é bem mais que sexo, que foi bem mais que nós, que não diz três-dias. É um desses abraços de aeroportos, que a gente guarda em uma caixa no armário e tem pra sempre, mesmo que a pessoa se vá. E tu vai, como sempre vai, deixando só o eco infantil das tuas palavras.

Eu gosto de ti – é, eu gosto de ti, repetindo assim, mais para si do que para mim, talvez por nunca haver pensado nisso antes e – pela estranheza causada – não pretender pensar nisso depois daquele momento.

Se já o havia deletado do celular, não havia porque não deletá-lo de minha vida, tão pequeno, tão breve, tão cafajeste fora que eu queria mesmo acreditar que eram mentira aquelas palavras bonitas que esbarraram em mim.

Quando tento entender, penso que talvez, nos relógios do universo, eu tenha me atrasado um pouco, ou andei demais na contramão.

12.10.09

APENAS O TEMPO PRESENTE

Posso te falar que penso em ti todos os dias?
não, não devo.
Mas o que é este dever que insisto se meu querer é maior?
Nada
Porque quero e digo que pensei em ti todos esses dias mesmo sabendo que não haverá resposta.
- sequer houve perguntas

Para mim só interessa corromper aquele dever óbvio que aprendi criança e transformá-lo nas palavras que eu quis dizer, dizendo.
Nunca me interessará um sim, ou um não, ou qualquer dessas certezas dúbias
Tu nunca me interessarás.
Só me resta a lembrança do que disse, que foi real no momento que disse
embora talvez nunca mais o seja.

Eu sou apenas o tempo presente

5.10.09

CONTRATO

Olha, eu te prometo dessa vez. Se quiser eu deixo de ser eu um pouco, por um tempo, o tempo todo que isso que não existe for durar ainda. Seria bastante meu isso de me renegar. Eu prometo, se quiser. Essas garrafas vazias serão testemunhas de tudo que ainda não fiz. Essa música ao fundo do Oswaldo Montengro que nos fala tão bem - eu baixo amanhã para lembrar de hoje ainda um pouco mais, prometo. Vou sair cantarolando no ônibus que a gente faz de conta e sempre diz que não, mas só o amor é que é fatal.

Eu te prometo que largo as paixões passageiras por uns dias. Não, a vida inteira é demais para mim. Mas no tempo em que formos nós - não há de ser muito, tu sabe - nesse tempo eu te prometo.

Não olha assim, prometo o máximo que consigo, porque quero cumprir a promessa. Não prometo nem um sopro a menos que o máximo. É pouco, sei.

Como adicional, incluo no pacote cumplicidade e um puco de admiração, se quiser. E garantia de 3 meses, como estipulado por lei.

Como contrapartida sugiro passeios de domingo, um pouquinho de atenção e que mate as baratas que encontrarmos no caminho.

Fechamos contrato?

28.9.09

TEUS CABELOS

Se eu te contar um segredo engraçado, tu ri? É que corto o cabelo sempre que troco de homem. Isso, ri. Viu, tu vai saber quando acabar pelo meu corte de cabelo. Daí tu sabe que não tem mais volta. O corte é uma mudança irreversível, mesmo que cresça de novo, é sempre um adeus tardio, prenunciado em novos fios. Sorri, tu disse que riria - meu bem, essa lágrima não é sorriso. Esse teu olho parece adeus. Vê, meu cabelo está intacto, foi só uma briga. Vê, estes fios são teus e aguardam carícia. Olha tua boca carente de sorriso e acaba estes teus braços num abraço. Que ainda conservo tus cabelos.

21.9.09

ENSAIO EM CAPS LOOK

Eu queria te dizer tanta coisa em caixa alta. Contar todos os ensaios mentais de diálogo-monólogo que me acompanham nos ônibus da cidade e nas aulas de italiano - em nenhum destes eu engulo o choro e o transformo em riso. E eu falo que a gente sabe QUE NÃO DÁ QUE JÁ CONHEÇO TUAS MENTIRAS - é nessa hora que confesso que também menti, coisa que, sabes, não vou confessar.

Eu conto das vezes em que chorei escondido em que chutei o cachorro-da-rua(sarnento) em que me entreguei a outro abraço pra esquecer. Exponho todos meus pecados silenciosos e quem cala é tu. E é tu quem disfarça e finge não ouvir - e quem quer chorar é tu.

Eu berro que AMO E VOU AMAR TODAS VEZES E QUERO MESMO QUE TODAS DOAM ASSIM E QUE EU SAIBA VIVER TODAS ELAS COM ESSE MESMO GOSTO DE RAIVA APLACADA QUE SINTO AO TEU LADO. PORQUE TUDO QUE SINTO NÃO É TEU. MINHAS NOITES INSONES NÃO TE PERTENCEM. É TUDO SÓ MEU E VAI CONTINUAR SENDO QUANDO ALGUM OUTRO CORPO OCUPAR TEU POSTO.

Mas nessa hora lembro que era apenas mais um ensaio mental, outro diálogo-monólogo não pronunciado. E que queria tanto te falar tudo isso. Em caixa alta.

14.9.09

TALVEZ O JOELHO LATEJANTE

Dói caminhar machucada assim como estou. Mas que é da vida sem dor? Tão falsa, a única verdade é essa. A única verdade, talvez o joelho latejante, nunca latente. Apenas algumas escadas a mais e alcanço aquele apartamento (maldito medo de elevador), ainda sem saber explicar direito a perna manca. Treino algumas mentiras realistas demais para serem verdade. Na hora, conto tudo milimetricamente como ocorreu - depois me xingo por não saber mentir.

Ele ri da confusão deste plano real onde vivo e acende um baseado, enquanto busca gelo para afinar minha dor. Feio, hein? Rio e declino o fumo que me oferece.

Ficamos assim, os dois com as cabeças baixas, pensando na minha impotência em mentir. Ele ri às vezes pensando em como lhe era fácil uma vida de segredos; noutras fica quieto, invejando meu dom de ser eu.

Ficamos assim, os dois com as cabeças baixas. Talvez uma vida inteira.

7.9.09

AQUELES 30 CENTAVOS

Eu não sabia se era pobreza ou ceticismo, mas alguma coisa me dizia que ele não valia os 30 centavos de uma mensagem de texto. Então digitei e não mandei. Claro, eu poderia escrever longos textos em uma mensagem de texto, mas aquela tinha o que? Cinco ou seis palavras que já esqueci e, se lembrasse, pouco diriam.

Mas o estranho do fato era isso partir de mim, que era sempre em tempo real. Logo eu, que era um sim materializado, nunca formulando as três letrinhas negativas. Logo eu, que semana antes tinha dito que amava para sempre, como eu sempre dizia e sempre acreditava, também. Agora, de repente, não valia aqueles 30 centavos. Fossem 20, talvez, as coisas tivessem sido diferentes. Talvez eu respondesse uma resposta bonita e talvez naquela mensagem tivesse meu final feliz, aquele casal de gêmeos de olhos azuis que carregaríamos numa tarde de domingo. Não, esse não era o meu final feliz.

Quem decide os preços dessas mensagens, talvez, nunca vá saber quantos destinos selou. 10 centavos, eu penso, certamente valeria aquela resposta. Aquele homem com cara de menino valia 10 centavos. Quase todos valeriam, exceto, talvez – e friso este talvez - os que já tinham desvalorizado.

Mas bate agora uma aflição desinteressada, quase um remorso de mim. E é num desses pensamentos cotidianos que prefiro pensar que estou ficando pobre.

31.8.09

Teleobjetiva

Ele me disse alguma coisa que não entendi, mas fingi que sim e respondi uma resposta inteligente - não daquelas inteligências de cultura, que ele tinha, mas de uma inteligência que vem de dentro e não se mede em livros.

Então rimos porque ele pediu para eu esquecer as diferenças, logo eu, que sou tão detalhes, nunca vendo o mundo numa grande angular. E dançamos aquela valsa que era samba em silêncio.

Mais uma dose?, pensei. E bebemos enquanto eu contava os cubos de gelo em nossos copos e ele comentava sobre a desigualdade social na África, acho, ou alguma dessas coisas que todos, menos eu, percebem.

Foi quando ele disse para irmos para outro lugar e eu pensei que não era um bom dia, talvez por não lembrar seu nome. (mas eu sabia que, na bochecha esquerda, lhe sobravam três fios irregulares de barba, marca daquela personalidade displicente que eu mal entendia ainda. quantas não lhe teriam o nome gravado à mente? aqueles três fios, só eu)

Três também os cubos de gelo, contei. Mas ele não sabia nada disso. Não fazia parte daquela cultura de livros que ele tinha, ocupada sempre em ver o todo, nunca o pouco.

Definitivamente, não era um bom dia.

24.8.09

O FIM DO FIM

Seus olhos me devoram e eu vou dizer que não quero não amo não sei - por que tudo que tivemos foi grande ou pequeno demais diante das coisas que perdi neste ano e ainda não tenho certeza se posso perder mais outra das poucas certezas que tive, mas se ele olhar com aquela cara de nunca e pedir pra ficar e soluçar um soluço ainda quente de amor não vou fazer nada e me rendo de novo como já rendi outras vezes - eu sei que ele diria então Amor, fica comigo mais esta noite, a última. mas não digo nada ainda falta a coragem e sobra uma lágrima querendo inundar o olho e aquele gosto de choro na garganta que é difícil de engolir mas eu engulo com os dentes cerrados e junto vem o gosto de uma dor latente que não entendo ainda e não quero entender porque ele ainda me olha e só quero que saia dali mas não sai e não pára e me encurralada como se soubesse que quero dizer e não tenho coragem e continuo sabendo que não consigo dizer e acho que dói mais não conseguir do que doeria dizer que fim – e eu abro a boca quase vomitando aquele choro que engoli formulo a frase devagar na mente e corto palavras até que vire apenas um acabou sólido mas eu mexo a boca movimento a língua e a palavra teima em não sair e ela já é terceira entre nós mesmo não tendo sido pronunciada. Eu me lembro de tudo como se fosse agora e penso aqui com a mesma sensação que tenho sempre que penso que foi a mesma que tive, talvez porque agora seja exatamente este momento mas não tenho certeza essas coisas de tempo para mim parecem tão mais complicadas do que olhar o relógio – Cinco horas, diz a senhora de verde a meu lado na parada, o ônibus já devia ter passado – e lembrar que agora é a hora em que tudo já acabou há tempos que não conto e nunca saberei o que aconteceu depois daquela palavra não ter saído de minha boca pois quem a pronunciou foi ele – a essa parte a memória não me permite acesso talvez pelos acessos de raiva que eu tive aquele dia e provavelmente os tive porque sempre tenho e sinto agora falta do coelho que tive e não tenho mais pois mora com ele naquela casa em que vivemos sem eu nunca ter morado onde agora minhas roupas estão à minha espera talvez menos saudosas que eu delas quiçá ainda jogadas na sala em companhia das garrafas vazias de cerveja que sempre encontrava no chão – Moça, seu caderno caiu, diz a senhora de novo, como é enrugada ela, agora subindo ao meu lado no ônibus. Obrigada, digo. Mas ela quer conversar Sabe, minha filha perdeu o celular assim, subindo no ônibus distraída e eu só penso em chegar àquela casa pela última vez para buscar minhas coisas e talvez ouvir palavras de reconciliação que sei que não ouvirei mas teimo em acreditar que existe a esperança de ouvi-las, calculo, porém, que a filha dela deve somar cerca de cinqüenta anos já. A senhora é realmente velha e sua filha não poderia ser ainda uma adolescente. È verdade? Digo apenas por pena, pois entendo que velhos gostam de conversar no ônibus e talvez em 1912 as pessoas tivessem o hábito de falar com estranhos pois não havia celular mas hoje se eu preciso falar com alguém enquanto estou no ônibus eu telefono e falo e este processo me parece bastante mais simples do que contar minha vida a desconhecidos. Você tem horas, menina? A velha realmente queria conversar e eu estava agora com a bateria de minha paciência acabando e ela, que tinha relógio, me pedia agora as horas, mas contive-me e lhe disse 17h15. Ela sorriu satisfeita e pareceu-me que, por hora, havia se contentado com o diálogo, não fosse, cerca de um minuto depois, contar-me que Fico feliz, pois não me atrasarei para a missa, não gosto de chegar tarde. Neste ponto levantei-me e sentei em outro assento, mais distante, com uma gorda ocupando o assento ao lado, para que não fosse permitido à velha sentar-se junto a mim, e então pude imergir novamente em meus pensamentos, sem interrupções idosas. Lembro então do que tivemos de bom e não foi tanto e do que tivemos de ruim que me parece pouco também ao que percebo que se tudo foi pouco em tanto tempo é porque esqueci de algumas partes e talvez seja melhor continuar esquecendo mas mesmo assim insisto em tentar lembrar e prever o que iria acontecer em alguns minutos quando, descendo do ônibus, subisse as escadas até o segundo andar e me deparasse com a porta de apartamento fechada, um campainha e aquele rosto que tão bem conheci me recebendo ao abrir a porta, agora sem beijar-me enquanto eu entrava. E foi isso, seguido de um silêncio ensurdecedor, que realmente aconteceu, quando enfrentei o fim para buscar minhas roupas.

E vale aqui lembrar a tristeza indisfarçável que carreguei comigo a analisar os cômodos, todos eles, e ver que sequer as paredes lembravam de minha presença, outrora constante. O que vejo naquelas paredes é o reflexo de minha ausência. A casa em que nunca morei, enfim esqueceu-me.

3.8.09

O RUIVO

Abro os olhos e a janela. O cheiro de sexo e vinho inunda o quarto. Fios ruivos sobre o lençol azul-petróleo. Barba? Pentelho? Qual a origem daquele quarto? Aqueles pêlos misteriosos? Toda aquela ruivice poluindo minha manhã de quinta-feira.

Quinta-feira.

Ligo para o trabalho avisando que estou doente, vomitando, com febre. Um drama do tipo que bem sei fazer. Observo o feixe de luz que escapa da porta entreaberta. Provavelmente o banheiro. Um vento que sopra leve balança a porta. Ali deve estar o Ruivo, imagino eu.

Com um descomunal esforço, cavouco memórias da noite anterior, em meio ao caos alcoólico em minha mente. Lembro números. Uma festa, seis drinks, quatro cervejas, três camisinhas que provavelmente repousam no lixo do banheiro.

E o Ruivo. De onde vieram aqueles pêlos? Lembro uma calça branca larga. Uma camisa voando de cor que não sei. Uma Zorba-preta-bem-preenchida. Lembro tamanhos, desempenhos, palavras. Até a voz dizendo meu nome. A mão peluda – pêlos ruivos – abrindo a porta do apartamento. Mas falta-me o nome, o rosto, o de onde veio.

De onde veio aquele apartamento? Aquela noite. Aqueles fiozinhos indecisos entre serem laranja ou vermelhos. Os cálices ainda pousam na cabeceira. O feixe de luz que sai da porta entreaberta que deve ser o banheiro reflete nos cálices, sempre que o vento sopra um pouco.

Lembro o Ruivo de costas, em direção a porta que deve ser o banheiro. Meias pretas, a direita mais curta que a esquerda. Pernas finas e coxas idem. Bunda peluda e magra. Espinhas nas costas. Ombros largos. Cabelos de pôr do sol. Que idade tinha aquele corpo? Talvez dez anos menos que eu.

A porta do que deve ser o banheiro ainda me instiga, com seu balançar suave de vento que vem de janela. Abro o guarda-roupa onde o Ruivo pôs meu vestido vermelho-caça. Ideal para fisgar adolescentes com mania de organização. Estão lá também meus sapatos. Lembro a figura ruiva, de costas para mim, alinhando meticulosamente as pontas do sapato na prateleira mais baixa do armário.

Visto-me e me dirijo à tão misteriosa porta. O feixe de luz que reflete no cálice sobre a cabeceira dá idéia de sagrado. Pouso a mão na maçaneta redonda e quente do sol. Emperrada. Empurro a porta, para logo depois lembrar-me que já devia estar longe.

No banheiro, o rosto branco do ruivo. A ruivice que se mistura com o vermelho do sangue nas paredes. O vermelho de meu vestido. Tudo vermelho demais, feito filme do Almodóvar. Sinto a visão deturpada. Lembro números novamente. Cinco socos, oito mil, vinte e um anos, três facadas.

Vinho tinto nunca mais.

27.7.09

MULTIDÃO MATUTINA

7 horas da manhã. Uns 70 rostos de olheiras fundas saem diariamente rumo a sua rotina de passar pela roleta e procurar um espaço no estreito corredor do ônibus, já ocupado por vários outros corpos cansados. Morar perto do fim da linha tem suas vantagens. Em meio à multidão que se amontoa, sou uma dentre os 48 privilegiados que viajam sentados.

Duas meninas de vozes estridentes conversam sobre a prova do dia anterior, no banco de trás. Calculo que não passam de quinze anos. Outras vozes que não distingo invadem minha cabeça. Saiu ontem? ...tapa na pantera! Amo tanto... e tu viu que a Ana Paula Arósio... Sons vindos de anônimos barulhentos demais para aquele horário da manhã.

Pastas, mochilas e livros denunciam futuros biólogos, arquitetos e engenheiros. Existe, claro, a possibilidade de que os objetos estejam mentindo. Ignoro-a. Alguns crachás passam pelos meus olhos indicando trabalhadores de diversas lojas do Centro da cidade. Em meio a isso, homens de terno se fazem notar, quase sem querer. E os lisérrimos cabelos das meninas de fichário cor de rosa lançam-se despreocupados sobre os outros humanos que ali estão, com seu balançar de comercial de xampu.

Sinto medo que uma das gordas que entram agora no ônibus fique presa na roleta impedindo a passagem. Por sorte, as roletas foram planejadas pensando nas gordas. Chegam ao corredor e o entopem – vingam-se assim, das gorduras que entopem suas veias. Humanos precocemente putrefatos seguram-se nos ferros presos ao teto. Suas regatas deixam à mostra uma infinidade de pêlos e suor nas axilas. Exalam cheiro de podre, contrastando com o forte perfume das moças de cabelo cor-de-gema – tonalidade adquirida por um preço módico, em uma das farmácias do bairro.

Cabeças de todas as cores misturam-se no pequeno corredor. Corpos de tamanhos diversos disputam lugares. Pessoas de diferentes idades e ocupações agridem meus olhos com sua feiúra matinal. Tropeçam em mim, e fazem com que suas pastas e bolsas me batam sem querer. Uma multidão matutina que fede e faz barulho. Estupram meus sentidos, poupando apenas o paladar. Sorte?

Um ou outro dos sentados dorme com a cabeça recostada à janela. Alguns babam. Uma criança chora em um banco distante de mim. Baba. Sinto, também, vontade de chorar. Pedir pra voltar pra cama. Mas é tarde, a hora de descer se aproxima. Deixo pra trás as vidas sem nome que cruzaram comigo naquela manhã, e, juntos, descemos, na última parada do ônibus. Rumo às nossas vidas que se encontraram em infelizes segundos, para logo após seguir.

Esqueço-os.

20.7.09

PORTFÓLIO

Era estranho perceber agora, relógio marcando horas que meus olhos cansados são incapazes de ler, que, numa fração qualquer de medida de tempo que não sei, todas minhas paixões – antes incrustadas à pele, não existam mais.

Invisíveis. Assim as vejo, como se fossem algo que nunca existiu, e talvez não mesmo. Todas passado, passam agora em minha mente desfilando em portfólio de imagens indolores. Eram muitas, sei, tumultuando um corpo inundado de platonismo. Hoje.

Não havia mágoa alguma para desfazê-las no ar. Talvez elas apenas não latejassem mais em mim, ocupadas que estavam em habitar outros corpos, não mais o meu.

Sim, todas as paixões de riso plácido e choro convulso, até mesmo aquelas com cor de esperança, guardadas mais na mente que no olho, as carregadas anos em silêncio, tão contidas em sua dor calma, que dizia insistentemente que tudo dará certo um dia.

Agora diluída a vontade do dar certo. Apenas lembranças cômodas de todas coisas que acabaram por descuido.

O que hesito em aceitar é que aquela tristeza raivosa, aquela ânsia de vida, seja agora tão serena, metamorfoseada em vazio.

13.7.09

AQUELA TRISTEZA

Já o tinha visto desnudo vezes que não caberiam no papel, mas só agora aquele corpo me deixa à mostra toda sua nudez. Só agora vejo o que havia por trás da pele - por trás dos pêlos. Aquele jeito de voltar atrás que surpreende mais a ele que a mim. Toda uma falta de orgulho que ele nunca soube ou nunca admitiu sentir.

Mas eu digo um não triste, do tipo que tentou ser sim por um instante. E eu não sabia de onde viera tanta imposição para dizer uma palavra que minha boca não queria acreditar, contrariando todas as falsas filosofias de vida tecidas a esmo por mim entre copos de cerveja.

Foi assim, de uma forma quase triste, que nos olhamos a última vez. Daquela tristeza que doía em silêncio - não o fim iminente, mas por não nos reconhecermos mais dentro de nós.

8.6.09

JÚLIO

Eu não esperava encontrá-lo ali. Pelo olhar, ele confessa que também não esperava me ver. Não daquela forma. Júlio, apresentei-os, este é meu namorado. Luís apenas sorriu. Ele tinha esse sorriso sempre pronto para mostrar quando algo lhe desagradava. Era a maneira dele de dizer que não gostou – nunca entendi como fui namorar um homem tão avesso às palavras.

Bem, acho melhor eu ir, o Júlio interrompeu, com aquele jeito dele de saber se afastar na hora certa. E foi.

Então ficamos a sós. Eu, ele e o silêncio, que era quem falava mais alto. Perguntei como havia sido seu dia e ele respondeu que tinha sido Bom, emendando banalidades que conversamos como se fossem relevantes, ambos sabendo que era apenas uma forma de adiar o diálogo que tivemos logo depois, quando ele desviou os olhos de mim e disse Este Júlio, é novo? Era bonita essa forma dele de aceitar, aquela submissão apaixonada que ele tinha não por mim, mas por qualquer paixão que lhe brotasse.

Às vezes a mãe dizia que eu devia me casar com ele, mas se casasse eu teria que ser fiel e isso eu ainda não tinha aprendido a ser. Enquanto isso, ele esperava. Ele sabia esperar tanto quanto era capaz de compreender meus deslizes e sempre com aquele sorriso que eu já tão bem conhecia. Ele ensaiou uma lágrima para comover, mas desistiu. Gostava de fingir que era forte ou que não se incomodava. Por tempos acreditei. Hoje, conheço a máscara.

Ele não pede explicações, tampouco as dou. Voltamos às futilidades, que eram mais bonitas que essas coisas sérias. Mas o toque do meu telefone interrompe. Eu já sei quem é. Ele sorri.

1.6.09

PÊLOS

Era estranho ele me dizendo aquilo, como se me doasse os pêlos de outro amor. Todas aquelas palavras pareciam dublagem mal feita, a voz não encaixava naquela imagem que sempre tive diante de mim. Era estranho perguntar se eu estava bem, sem nenhuma raiva na voz. Tudo errado demais para aquela segunda-feira morna de ônibus ainda. Sorri como nunca o vi sorrir, como quem passeia com seu cão num domingo qualquer, repleto de alegria infundada e serena. Mas passeia é por pensamentos, divaga em paixão, faz alusão àquele passado como algo que já passou. (Eu sempre quis que o fim acabasse mesmo, mas quando ele desce do ônibus fica um lugar frio ao meu lado, uma sensação vazia no estômago, como o vazio que ele fez no dia que foi embora levando as roupas e os vinis. Nascidos nos anos 80, só ele ainda ouvia vinil. Fazia parecer culto, creio.)

Mas eu também tenho que descer do ônibus que minha parada é logo. Eu não quero, mas deixo uma tristeza insincera entrar em mim. Ela parece que adentra a boca com o café já frio que tomo ao chegar no escritório. Todo mundo espera seus bom-dias na sala, mas esqueço. Só lembro do que não consegui esquecer. Digito uma multidão de pensamentos no teclado que não se transformam na idéia que eu deveria ter. Nesse momento eu queria fumar, mas nunca gostei de cigarro. Só vejo a calma que passa aquela fumaça saindo leve da boca. É uma calma bonita de ver, aquela fumaça.

Era estranho eu sentir assim agora essa facada que já devia ter cicatrizado há meses. Mas eu nem sei sobre o que sinto. Tiro logo da cabeça qualquer idéia que surja. Difícil concentrar mais que 5 minutos. Eu decido dizer tudo. E ligo, é de manhã ainda, ele não entende porque ligo logo depois de termos nos visto. Mas nada do que tivemos foi feito para entender. Nós não éramos equações solucionáveis em porquês, nunca fomos. E mesmo assim ele entende tanto quando ou consigo entender do que estou pensando, quase nada, acho. Não faz diferença. É engraçado que eu não saiba mais o que falar, que eu talvez nem tenha falado, que talvez aquele lapso de tempo tenha se passado em outra dimensão, não nessa tão plana. Estranho que tenhamos rido juntos novamente, distantes apenas por uma linha telefônica, a mesma na qual costumávamos chorar madrugadas inteiras aquele amor que sentíamos no estômago, nunca no peito. Desligamos ainda sem saber o porquê daqueles outros pêlos doerem agora nele. Os dele ainda encravados em mim.

25.5.09

SILÊNCIO

Um cachorro rompeu o silêncio da rua. De qualquer forma, não era daqueles silêncios nobres, de pessoas que não fazem barulho. Era o silêncio sujo que os bairros boêmios tem após o amanhecer. Apenas um dos bares em funcionamento, àquele horário. O sol alto já denunciava advogados e contadores em seus escritórios. Mas nós não usávamos paletó. Copo a copo, desvendávamos os segredos da humanidade, como se fossemos talvez aquele cachorro que rompeu o silêncio da rua. Nunca humanos. Preferíriamos para sempre aquela vida de não ter horários,mas paixões. Essa vida de choro e riso alternando-se incansavelmente. Sequer conhecendo o significado da palavra inércia. Seríamos eternamente livres, como prometemos naquela manhã de agosto - o frio do sul conferindo uma tonalidade rósea, quase inocente, a nossos rostos. Hoje, nostálgico lembrar aquela manhã, há pouco mais, ou pouco menos talvez, de cinco anos. Meu despertador toca antes da hora em que outrora eu dormia. E nós sabemos em silêncio, como o silêncio das ruas boêmias ao amanhecer, como o silêncio rompido daquela manhã fria de agosto, que não há mais tempo para abraçarmos a vida.

18.5.09

MOSCAS

A casa guardava ainda o frio do inverno. Contrariando a temperatura, insetos displicentes haviam tomado a casa. Não qualquer inseto, mas ruidosas moscas a vasculhar o ambiente com olhos cubistas. Apaixonadas por natureza morta, eram enganadas pela multiplicidade de olhos que lhes mentiam em Picasso qualquer pincelada que vissem.

Quando vivo, o sonho do pintor era fazer platéia mais que fortuna. Jamais obteve qualquer dos dois objetivos. As paisagens frias agradavam sequer a mãe, que há meses não o procurava.

Foi que ontem, justo ontem, resolveu procurá-lo. Apenas o mosquedo velando o corpo do artista que, segundo uma das moscas presentes no local, tão bem as entendia.

7.4.09

A MULHER DO REITOR

Avistou os cabelos presos da mulher do reitor saboreando um frango grelhado. O ponteiro do relógio percorria quilômetros entre uma mastigada e outra. Já seria primavera quando parasse de comer - as quartas-feiras frias como aquela seriam passado.

Mas ele só foi ao bar porque sabia que ela estaria lá. Ainda não havia lavado as mãos que carregavam o cheiro dela, da mesma forma que, na lembrança, carregava a textura daquelas coxas mais duras que a idade supunha.

Ele ensaiou um sorriso ignorado. Ela podia sentir que a boca dele não portava os sisos, menos por extração que por idade, mas era na boca de mulher que ele se concentrava. Naquela mastigação satiricamente demorada.

Pela primeira vez, Luís sentiu um sangue confuso arrepiar-lhe os pêlos adolescentes. A constatação inocente de que o frango exigia da mulher mais tempo que ele havia exigido.

MÚSCULO

As fotos presentes no álbum retratavam menos do que as dele haviam partido em direção à fogueira. As desertoras estavam mesmo destinadas às cinzas.

No fogo, dividiam lugar com cartões apaixonados, um coração de pelúcia e um músculo qualquer, outrora usado para bombear sangue.

ALZHEIMER

Há 15 anos parada na sala, Rita espera o filho voltar da escola. Todo dia, às 17h. Com poucos passos, alguns suspiros e menos palavras, apenas espera a chegada do filho. Permanece ali, quase inerte.

Quem chega é o marido, que retilineamente lhe mostra a foto do filho e lembra que querida, ele não voltará da escola hoje.

6.4.09

CICUTA

O que não mata, engorda, brindou a anoréxica.

9.3.09

LITERAL

Toda a vez que nos víamos era a última. Potencialmente falando. É engraçado saber como éramos felizes, sem que as lembranças consigam ocupar a mente. Sabendo apenas, incapaz de sentir. Àquela época, nos apegamos ao estado terminal profetizado pelo médico. Jamais cogitaríamos a cura – éramos felizes encerrados na pequena ampulheta dos meses de vida.

Ah, você queria viver uma daquelas paixões de livro de poesia barata, com todos os problemas que um problema deveria ter, só para poder chegar ao feliz para sempre. Para sempre era tão pouco já, a felicidade eterna nos era palpável. Eu não acreditava nos acessos shakespearianos, pois o meu para sempre era bem mais permanente e incerto.

E quanto mais a contagem regressiva era contada, mais explodia paixão daqueles poros cuja vida estava esgotando-se. Cada dia uma nova aventura, um novo percalço romântico, uma concretização do ideal a ser lembrada.

Quando faltavam cerca de 30 dias para a data fatídica, ousou, pela primeira vez, não ser perfeito. Jamais saberia explicar o que apossou-se de mim. A utopia havia descolado-se do corpo que tinha sido sua morada durante os últimos meses e agora andava bêbada pelas ruas da cidade buscando outra alma vazia sedenta de vida por esperar a morte.

O último mês transformou-se em dois, e o segundo trouxe um outro e assim a vida permaneceu ocupando aquele corpo que eu já não sabia se pertencia a mim ou ao mundo. E, minguando assim, nos via em páginas de Caio Fernando Abreu, com uma paixonite tão jovem e doente, que desfaria-se no ar.

Não bastou cair - quem foi rainha, dizem, nunca perde a majestade. Continuei ao seu lado, esperando não casamentos, mas funerais, fingindo ainda viver aquele romance bonito, de livro de quinta série. Mas decaía não em qualidade literal do personagem que me impunha, mas como homem real que era obrigado a ser, até que nos vi refletidos em páginas rodrigueanas.

Foi que, então, tomada pelo ópio da humilhação, ousei proferir palavra que quebrasse o pacto do eterno enquanto dure, que já não mais era real - éramos literais sempre. Foi de um adeus gélido a última lembrança. Porém, a tristeza inocente de que sua morte não tardaria – o último mês multiplicado em 10 já – me apossou.

Dias e dias, que noites já sequer sei se haviam, visto que era sempre dia dentro de meu apartamento, luzes acesas, janelas fechadas, passei assim. Na calma agonia de quem aguarda o fim. Ainda nunca usado o vestido que escolhemos juntos para que eu usasse em seu velório.

Quando as amigas souberam do ocorrido lamentaram nossa vida sempre tão teatral. Os personagens que dele foram feitos não dependeram apenas de sua cabeça, mas havia um diretor regendo tudo aquilo, e a notícia desta orquestra estampava os jornais há meses. Alienada que estava em nossa arte da vida, incapaz de ver qualquer realidade em noticiosos tais. Mas da boca de uma delas, veio a notícia da cura, para me atormentar.

12.1.09

O QUARTO

Nunca soube como parei aqui, mas o fato é que aqui estou há tempo que não conto.

No início, eu era solidão. Fazia da saudade a única companhia. Logo, as paredes úmidas aprenderam a me confortar. Todas as noites, num abraço, protegiam do vento que a janela ameaçava. Durante o dia, era a mesma janela que me brindava com a vida de uma ou outra flor, às vezes um pássaro, nunca pessoas. (Lembro o dia em que o uma borboleta entrou no quarto – como vivi!)

Em tempos, era a falta de comida que me assombrava. Às vezes a falta de sexo. Às vezes a de higiene. Tudo resolvi. Comia baratas, lagartixas, uma ou outra fruta que a janela presenteasse, pendurada num galho ao meu alcance. Aprendi o prazer que existia em mim e mais ninguém. À sujeira, acostumei-me, não mais percebia cheiros saídos de meu corpo, não mais me ocupavam as doenças. Estava tudo fora do quarto. Ali, não havia resquício de humanidade, não fosse eu, já tão inumana.

A verdade é que acostumei-me à privação. Preferia o cárcere particular que me era ofertado naquele quarto, do que o mundo barulhento da rua. Ali, tudo era ao alcance da mão, a vida resumia-se no som do balançar de folhas na janela.

Chances de sair nunca faltaram, mas fugir da simplicidade em que me encontrava para um mundo equacionado a cada milímetro não seria saudável. Nem a solidão ou a ausência de comodidade me motivavam a pular a janela. Era só ela minha televisão, era nela minha existência.

De vez em quando, vinha a tempestade a lembrar-me que o mundo existia além de mim.

5.1.09

ROLETA RUSSA

Se tivéssemos morrido ali, seríamos felizes para sempre. Mas ele disse que não gostava do jogo. Quis parar – nem havíamos começado. Eu peguei a arma.

Ele tinha o rosto de uma cor confusa entre medo e raiva. Do auge de seus quarenta anos, invejava a inconseqüência de menina que eu tinha. Ele pensa nos filhos – o olho denuncia. Se soubesse que havia outro rebento, em formação dentro de mim, que faria? Pagaria o aborto, sumiria da minha vida, nunca mais notícias.

Miro no risco de sobrancelha que sobra entre seus olhos.

Eu não sabia o que tinha me levado a inventar a brincadeira. Mas eu sabia o que me motivava a insistir. Volto a arma para minha cabeça e puxo o gatilho. Tua vez.

Ele berra. Eu digo para ele que vamos ser felizes para sempre e o irrito mais. Ele tem medo, confusão. E sua angústia me dá mais vontade de ser deus, a arma na mão fingindo brincar com a vida. Aponto de novo para seu rosto. Ele pára, cega, berra. É uma galinha sem cabeça, insistindo em viver. Puxo o gatilho.

Não goza a percepção de ainda estar vivo, sequer a entende. Faria qualquer coisa por mim agora. Larga a família e foge comigo? Largo. Eu não queria que ele largasse. Direciono o cano da arma para a ponta de meu nariz e atiro novamente e novamente nada acontece.

O profissional bem sucedido, o pai de família, o amante sagaz, todos agora se renderam ao rato de laboratório em que ele se transformou. Tudo à mercê de mim. Volto o trinta-e-oito para seu semblante amedrontado e aperto mais uma vez o gatilho. Ele não sente a sensação da sobrevivência, só percebe a morte eminente.
Miro em mim e disparo outra vez, com a certeza de permanecer intacta, para zombar do homem desconstruído em minha frente. Enquanto ajoelhado ele implora pela vida, aponto para o topo da cabeça e lhe dou novamente a impressão de presenciar a morte, mas ela não vem ainda. Enquanto a mão direita empunha a arma, a esquerda seca o pranto que lhe escorre a cara: Calma, são só mais duas agora.

Nos olhos, ele denuncia querer minha morte, não pela angústia que eu lhe causava, mas por ser a única forma que tinha em mente de continuar vivo. Rodo a arma com a mão e disparo bem entre meus olhos. Sorrio. Tua vez! Vulgarmente amedrontado, o choro lhe toma o rosto, a angústia pesa as costas. Vomita. Transita num infinito entre implorar a vida e carregar em insultos contra mim. Ele não cogita a fuga. O raciocínio não lhe permite concentrar em outra palavra que não seja morte. Pede por favor, com grossos fios de baba lhe marcando a boca. Está em condições de aceitar a vida com qualquer privação, desde que a tenha.

É o ponto onde eu precisava chegar. Deixo a arma descarregada no chão, seguro seu rosto, e digo: estou grávida.