20.12.10

NA METRÓPOLE

ela mora na metrópole e tem os pés sujos de suor e indiferença. na metrópole é música a buzina do carro antigo e o elevador do prédio que insiste em subir e descer sempre que chamado. e é música também a música, essa mistura de sons que sai do apartamento dos vizinhos e ingressa sem permissão no seu.

na metrópole não é permitido escolher. as coisas apenas estão e sua cabeça deve ser movida 90º acima e 90º abaixo sempre em aprovação. a metrópole não tem rosto e quando sai de casa caminha 7 quadras até o metrô lotado que lhe leva ao trabalho sempre no mesmo pontual horário e 5 paradas depois desce na estação trabalho caminha meia quadra peatonal busca as chaves na bolsa e sempre demora a encontrá-las mas encontra e abre a porta e entra chama o elevador e sobe até a oficina X do 80º andar onde continua sendo apenas sujeito de verbos por mais 8 horas, quando não vocativo de algum xingamento.

o relógio sabe então dar-lhe alforria ao final de cada dia, quando seus ponteiros estiram-se lentamente, um em oposição exata ao outro, formando uma vertical reta perfeita. e nessa linearidade ela sabe que é livre, daquela liberdade que as metrópoles tem. e nessa hora em que passa já despreocupada pelas bancas de revistas, lê mais um assassinato e dessa-vez-não-fui-eu-que-sorte-veja-só. e pensa em telefonar para alguém, mas não há ninguém para ligar e são-só-vinte-quadras-vou-caminhando.

na metrópole ela é invisível. e quando chega em casa, sorri.

13.12.10

PORTUÑOL

De repente não havia mais ninguém. Tudo olvidado no momento do check in. Esta sempre fora minha casa – ou talvez faça só um mês, conto mentalmente com esta nova noção de tempo cujos dias da semana podem também ser encontrados no planetário. E o planetário, este antigo companheiro, não está mais ubicado ao lado da faculdade que também deixei de frequentar.

Sim, faz só um mês, respondo ao policial que, desconfiando deste pelo loiro e dessa pele branca misturadas ao sotaque brasileiro indaga se já tenho minha identidade. No, no la tengo, verdad. Solo voy a tenerla en enero, sem importar-me com a correção gramatical.

Quando saio dali percebo o tempo que cabe dentro de um mês, o que inclui, já te disse, segundos seculares e dias que correm, assim com essa velocidade que só o tempo sabe que tempo tem. E é nessa velocidade de dias que bajo del subte, camino cuatro cuadras hasta que sé yo e paro. É o Brasil que me chama em 140 caracteres na tela do celular. Aquela palavra que sempre acreditamos tão brasileira me invadindo agora, plena 9 de Julio.

Se não obteve resposta, minha desculpa unânime sempre será este sinal inconstante de celulares porteños. Impossível expressar assim, tanta distância e tão pouco espaço, o estranhamento de não extrañarte.

6.12.10

Haicai para Maria Clara

Grande confusão verbal
aprendeu a palavra titia
com uma câmera digital

8.11.10

O PÁSSARO

Deixava sempre a janela aberta para ouvir. Sabia que, pela manhã, as ambulâncias se confundiriam com cantos de pássaros. Gostava, sobretudo, da discrepância e de, às vezes, amanhecer imaginando que vida aquela ambulância buscava, ou qual morte estaria anunciando. Quando satirizavam seu peculiar gosto pelo sangue alheio, calava. Era apenas uma forma de enxergar as coisas, quase um daltonismo. E sempre havia um ou outro pássaro anunciar que não só de humanos se faz o mundo.

Aquele foi diferente.

Entrou desrespeitoso através da janela e posicionou-se a seu lado. A asa manchada de sangue. Tentou enxotá-lo, para que voasse de volta à rua, à rua que era seu lugar. O pássaro, penas amarelas com a mancha vermelha denunciando ferida, negou-se. Teimou ficar ali com ar imponente de quem exige ajuda.

Ela, que desfrutava ao amanhecer de seu canto, a embelezar as sirenes, não poderia hoje, por obséquio, levá-lo a um veterinário, fazer um curativo naquela asa? Não. Tinha pressa, e apressada foi ao trabalho, ao dentista, à academia, para então voltar a noite e vê-lo novamente ali, sustentando o silêncio, como em greve de fome.

Tratou de pegar o pássaro e colocá-lo para fora de casa, com as próprias mãos - lavadas em seguida e desinfetadas com álcool gel. O bichano já estava lhe sujando a casa de sangue e teria que chamar a faxineira tão logo fosse possível. Para que não entrasse mais, fechou a janela. E estava cansada, e casada dormiu, porque na manhã seguinte tinha pressa, que ir trabalhar, passar na estética, pagar aluguel.

Quando chegou em casa, o pássaro permanecia em frente a janela, as penas cada vez mais perdendo o tom amarelo para o vermelho. A falta de canto não lhe era mais protesto, e sim, talvez, única escolha. Se apiedou do animal e deixou-lhe entrar novamente. Não era comum tamanha dedicação.

Assim que cruzou a linha que divide a rua da casa, deu um último silvo, que confundiu-se com outra ambulância, que carregava vida ou morte humana, e desfaleceu.

6.9.10

QUASE-POESIA

MORRO
porque a vida não tem mais graça
desisti de tudo
e mesmo assim, por pirraça
não desistiram de mim

MORRO
porque há emprego e eu não quero
porque há sossego e eu espero
que isso tenha início, meio e fim

MORRO
porque o sol hoje se pôs mais bonito
do que todos os dias bonitos
com tons de uma aquarela
que não se encontra mais

MORRO
porque hoje sorri todos os sorrisos
que um dia alguém sorriu
porque a vida é imprevisto
e a minha já partiu

MORRO
porque a vida me inunda
e deixo aos meus
meia dúzia de alegria
todo deus que existir
e uma quase poesia

30.8.10

ROSA-E-ROXO

Às vezes eu olhava e sabia que era somente uma flor que abusava da mistura rosa-e-roxo para chamar a atenção. Quase sempre era assim já e meu olho costumava até a não vê-la, na pressa dos tempos. Mas, naquela manhã, depois de cinco dias em uma rotina de vômito e fezes, encontrar a flor para a qual eu fazia pedidos na infância me pareceu um sinal.

É verdade que quando criança minha história variava de acordo com o humor. Para algumas amigas dizia que dava sorte - e só. Para outras, indicava que fizessem desejos e a planta se encarregaria de torná-los reais. Para todas, porém, reforçava que deveriam guardar a flor.

Naquele dia, ao encontrá-la na saída do hospital, não soube escolher uma das virtudes atribuídas à planta. Por via das dúvidas, fiz um desejo e saí comemorando sorte, com ela no bolso, sem medo de parecer criança.

23.8.10

METRÔ

às vezes eu penso que o metrô é um fluxo contínuo. às vezes eu penso que o metrô está dentro do meu próprio corpo - é aquela chaga purulenta que não cicatriza nem dói. confesso minha vontade de parar em meio à estação para ver se o fluxo pára também -
............................................................................................................................mas o que acontece se o fluxo pára (sei lá) meia hora?
param também, por acaso ou rebeldia, os ponteiros dos relógios?
e a chuva na rua, que fará?
(se todos estão lá, parados, a chuva não os pode molhar.) porque você sabe, parando os relógios as fábricas param também. não se produz mais café, energia ou força de trabalho.


.eis que me dou conta: o metrô pára também. (ah, se um dia eu parasse aquele fluxo, quem sabe congelava o riso banguela no rosto da maria? quem dirá que não parei a morte no encalço de seu antônio? e talvez a juliana tivesse para sempre o namorado ao seu lado.)


às vezes eu penso que o metrô é um fluxo contínuo. às vezes eu penso que o metrô está dentro da vida - e que só depende de mim.

19.7.10

NATUREZA HUMANA

Se eu não tivesse um gato, talvez meu entendimento sobre relacionamentos fosse muito menor. Mas o fato é que o tinha e nunca gostei ou desgostei de sua presença. Quando em silêncio, às vezes, o via encolhido na cadeira ao lado da minha e sentia vontade de afagar aquele pêlo preto e macio. Era apenas fazer menção ao carinho que o gato tornava-se uma tortura. Puxava a mão que via em direção a sua cabeça e, se fugíamos, acompanháva-nos por horas ainda, até entender que fora apenas um carinho esporádico. Perseguia-nos e nos imputava sua enorme carência. Que carregássemos ela como chaga: quem mandou ter um gato?

Da independência dos felinos, nada trazia e, não fosse o formato e o ronronar que ressoava somente ao dirigirmos o olhar para ele, não o diríamos gato. Era sim, talvez carrapato, melhor das hipóteses cachorro, que alguns compartilham assim da carência canina.

Com o tempo, acostumei-me a desistir antes do primeiro afago para evitar o sofrimento posterior. Via o gato, mudava de aposento. Se ele vinha atrás, trancava-me no banheiro e, ao sair, tropeçava, quase sem querer, no bichano. Tornou-se quase medo o que nutria por ele.

Hoje, quando atendo o telefone, ouvindo choro de amigas do outro lado da linha, suplicando conselhos, rabiscando explicações, vontade pura de lhes emprestar o gato. Em uma semana, entenderiam na pele a natureza humana.

12.7.10

PLANO DE FUGA

Se já antes não havia certeza da sanidade mental do pai, agora era certo que esta já não mais existia. Certo dia, um mal estar lhe veio visitar durante o trabalho. Como foi parar no hospital devido a isso, soubemos que o mal estar era um fato, de fato. O pai, que evitava a brancura dos estabelecimentos voltados à saúde o quanto podia, ligou para a mãe informando o ocorrido. Não se sentia bem, uma dor no peito, não foi nada, nada demais. Pediu calma e uma muda de roupas. Era provável que ali passasse a noite, procedimento de rotina.

A mãe saiu do trabalho, correu para casa e trocou o almoço por uma visita ao hospital, munida de muda de roupas, chinelo e um pijama. Para o pai, claro. Quando próxima ao estabelecimento, o toque do celular lhe surge novamente: o pai, perguntando onde estava, que teve alta e iria para casa com ela, que não teve tempo de estacionar o carro. O pai, que lhe esperava do lado de fora do hospital, entrou apressado no veículo e vieram para casa. Não foi nada. Nada demais. Respondia às perguntas sobre o que ocorrera. Queria apenas deitar um pouco para descansar.

Durante o repouso, o telefone de casa toca, a perguntar pelo senhor Flávio Dutra. Ao saber do que se tratava foi quase espanto o que experimentamos: a enfermeira do hospital preocupara-se pois, na hora do remédio, constatou que o paciente havia desaparecido.

A ela, pedimos desculpas. A ele, uma explicação.

5.7.10

HORA DE CHAMAR A SAMU

O pai era um homem de vícios secretos. Já contei, em outro texto, que ele fumava escondido. Mas nunca contei da adoração secreta que nutria por nossa cachorrinha.

Acontece que sempre tivemos animais em casa, mesmo que minha mãe se encarregasse do sumiço de alguns. O pai, apesar de não os maltratar, preferia distância. Quando ia sentar-se ao sofá, sempre junto ao braço direito do móvel, que ficava exatamente em frente à TV, chamava-nos. Tira ele daqui. A frase imutável poderia referir-se à nossa gata ou ao outro cachorro que tínhamos, já falecido. Mas ele ignorava-lhes os nomes e mesmo o sexo. Era sempre apenas ele. E falava quando me virem fazendo carinho em bicho podem chamar a SAMU. O que era a variação de uma frase que usava para quase tudo o que previa nunca fazer. E SAMU, em seu discurso, vinha no feminino mesmo, referindo-se à ambulância do serviço.

Mas quando a Felícia, uma Yorkshire com carisma de líder nacional, chegou a nossa casa, o pai mudou. De vez em quando perguntava-nos, quando ela não estava a vista quase em tom de desconfiança cadê ela? O pronome definindo o sexo corretamente era um indício de mudança que não poderia passar despercebido. A cadela conquistou não apenas sua permanência na casa, permitida pela mãe, quanto o carinho desta, que passou a ser freqüentadora assídua de pet shops, levando a Felícia no colo ou em uma das novas coleiras que ela lhe comprava.

O pai, por sua vez, trazia o carinho pelo animal cada vez mais aparente, mesmo que teimasse em disfarçá-lo. De vez em quando era flagrado sentado ao sofá, no lugar imutável, com a cadela ao lado. E chegou mesmo, esses dias, a perguntar se a bichana não estava com fome, ao ver que carregava um pote de comida na boca.

Esta madrugada, ao acordar, percebi que a Felícia não estava em sua cama. Procurei atrás do sofá, onde, numa atitude contorcionista, conseguia se esconder quando queria sossego; e sob minha cama, um de seus locais prediletos. Mas ela não estava. Uma busca minuciosa apontou seu paradeiro: o quarto de meus pais, entre um e o outro. Não sei se espero mais alguns dias para analisar as novas manifestações de carinho, mas é certo que nos atrasamos na hora de chamar a SAMU.

28.6.10

AMEX

Quando a adolescência chegou ao fim, minha irmã se tornou uma pessoa centrada. Tão centrada que dava-se ao luxo de superficialidades mundanas, como o ciúme. Começava por investigar o namorado e só parava após uma minuciosa revista nos hábitos de toda a família. Ao pai dedicava maior atenção, realizando incursões pela carteira, de onde, invariavelmente sacava uma nota ao acaso, e pelo celular.

O pai que, apesar dos defeitos ainda sabia organizar os próprios talões de cheque em prol da conta bancária, usando os canhotos para registrar informações completas sobre seus gastos, fossem valor, nome do estabelecimento, telefone, ou mesmo as três informações reunidas.

Um dia, em suas escavações, minha irmã descobriu determinada quantia gasta em um local descrito como Amex. Não precisou de imaginação extraordinária para supor que era um motel e secretamente anotou o telefone, ainda sem saber ao certo o que fazer com a informação e com o número.

Contava para mãe, desabafava com uma amiga, guardava segredo? Xingava o pai, aproveitaria a oportunidade para fazer chantagem ou apenas esquecia tudo e maldizia seu hábito de escavar a vida alheia. Dormiu com a dúvida e talvez passasse o resto da vida com esta, não fosse a sensata decisão de telefonar para o local e averiguar a informação. Do outro lado da linha, a voz da atendente veio lhe fazer rir American Express. Bom Dia. Em que posso ajudar? Desligou agradecendo, ela já havia ajudado bastante.

21.6.10

ANIVERSÁRIOS

Lembro que há alguns anos, quando contava ainda com menos tamanho e mais vontade que hoje, meus aniversários eram feriados nacionais. Meu pulo da cama era guiado pelo faro de presentes e motivado por ligações insistentes no telefone de casa - era uma época jurássica em que as pessoas ainda ligavam para as nossas casas!...

Havia então docinhos pela casa e os presentes eram embrulhados, e não depositados na conta. Os parentes distantes lembravam e o parabéns-a-você era um ritual inevitável.

Não fazem décadas, pois contabilizo apenas duas delas completas. Mas hoje, em meus aniversários, me surpreendo a cada ligação. Quem mais esquece a data agora sou eu. Obrigada, obrigada. Olho o calendário. Era hoje mesmo.

Imaginem então quando vierem os anos, as rugas, os cabelos brancos que terei - se os tiver. Quando me disserem aniversário, recorrerei eu, em dúvida, ao dicionário, para compreender este misterioso significado dos anos.

14.6.10

O DIA EM QUE NOS TORNAMOS PARENTES

Há um momento na vida de todos nós em que viramos parentes. Perdemos nossa capacidade solitária de sermos apenas nós e ganhamos um prefixo. Somos agora pais, mães, avós, avôs e, no meu caso, tia. Foi assim que a Maria Clara, com seus imponentes 47 centímentros começou a mudar nossa rotina. Há poucos meses, tias eram pessoas cercando a meia idade, mas, com sua chegada, passei a pertencer, com orgulho duvidoso, ao seleto grupo. Orgulho? Sim, porque para ela minha irmã, vulgo sua mãe, não passa de uma enorme teta, sempre pronta para satisfazer sua fome.

Todos concordamos obedientes aos cargos que ela nos imputou. Choro agora é privilégio de seus poucos meses - privilégio que utiliza sem moderação, com a certeza secreta que, assim como um móbili de bichinhos, o mundo também gira ao seu redor.

7.6.10

JACARÉ DE ESTIMAÇÃO

Tinha um jacaré de estimação. Mesmo que nunca o tivesse visto, era meu. Adquiri no momento em que ouvi a mãe repugnando sua existência. Eu não o repugnava, pelo contrário; se antes a casa onde morávamos me causava repulsa, ele fora a causa de eu passar a gostar dali.

Na escola, narrava aventuras imaginárias, que não eram mentira, pois lembrava-me delas com detalhes e, inclusive, poderia jurar que realmente tinham acontecido, apesar de saber que não.

Eu não contava à mãe sobre meu animal de estimação, e ela nem ousava perguntar-me o que tinha feito com que eu me tornasse de menina contrariada com a moradia a feliz frequentadora do pátio. Dias gastos buscando com os olhos o novo amigo, sem sucesso. mas eu sabia que ele estava lá, de alguma forma que eu não entendia, como até hoje não entendo o surgimento daquele caminhão de mudanças, sem nenhum aviso ou adeus.

31.5.10

NÓS

Me inquieta andarmos agora lado a lado, em silêncio. Nossas bocas, tão acostumadas à troca de fluidos, hoje sequer ousam se abrir. Não há palavras entre nós. Não há mais nós.

Nossos passos de então são serenos, como se os pés simplesmente soubessem apenas andar. E andamos, na companhia daquela noite, pisando o silêncio devagar, para não corrompê-lo.

24.5.10

CAFEÍNA

Eu abro a gaveta e minha vida não está ali. Então sigo pela casa perseguindo a dúvida, sem sucesso. Eu lembro um pouco do passado, enquanto folheio uma revista de 1999 e não me encontro nas manchetes ou reconheço aquele país. Eu apago a luz e abro a janela, busco no dicionário o sentido de qualquer palavra que exista
.........................................................................................tomo um café
.................................................................................................................tomo um café
.........................................................................................................................................desacelero um pouco e penso em telefonar para aquela garotinha que eu era tão pouco tempo atrás mas ela não está - eu não tinha mesmo o que lhe dizer concordo com todos os erros cometidos que me transformaram nesta coisa que não sei acendo a luz fecho a janela anoitece já além da cerca e eu sequer fiz algo que não fosse pensar
............................................................................................tomo um café
.........................................................................................................tomo um café:
..................................................................................................................................a vida não vale o que pesa.

17.5.10

NARIZ E OLHOS VERMELHOS

é muito pior, eu disse, porque gripe se cura. esse nariz e olhos vermelhos com que te presenteio hoje, em nossa jornada laboral, são ressaca mesmo. e isso eu não curo nunca porque nasci assim, com o pé na boemia e a mão na cerveja. claro que não disse isso na entrevista para a vaga, tu não contrataria alguém movido a café e álcool. mas eu atraso pouco e venho sempre porque preciso desse pouco que ganho que é o que sustenta esse nariz e olhos vermelhos que tu vês nesta quinta de manhã - que sem estas intermináveis horas de suor, não haveria momento feliz.

10.5.10

DESPUDORADA

Minha inspiração, se é que a tenho, é pontual
Aparece na hora da insônia e persiste apenas até indícios de claridade surgirem.

E então já é hora do café da manhã e de outro dia inteiro de ponteiros preguiçosos

Mas à noite,
após as poucas cervejas,
na esquina do sono tranquilo,
ataca-me novamente, despudorada, a inspiração

Cogito afastá-la
(geralmente, de nada me serve)
Mas pode ser que num relâmpago insone
ela venha em seus trajes pequenos
a me trazer uma alma inteira descrita em letras

Nesse dia eu lhe direi que hoje não
E dormirei minhas oito horas mortais
Afastando-a, como quem afastasse uma mosca

Nunca mais a prisão das palavras

3.5.10

SE TIVÉSSEMOS UMA POLAROID

Me apunhala a tristeza: Adonis não está nas fotografias. e faz tanto tempo. Sua foto não está na geladeira não está na gavetanão está na agenda de 2001. Eu procuro, mas não está no armário, nem no banheiro ou sob o colchão. (a foto de Adonis não está em cima da TV, não foi gravada em disquete, nem em CD - acho até que na época poucos tinham pen drives). no álbum de fotos não está, sequer caída no forro da bolsa preta de fuxicos que eram moda naquele verão. Adonis perdeu seu rosto num dia de chuva e eu vasculho pela casa e ele não está.

Quem sabe esquecido naquele filme de 36 poses - asa 100 - que nunca revelei.

19.4.10

PRESSA

antes eu tinha pressa porque a pressa anda junto com a esperança. mas esse quase ano me ensinou a entender e hoje te cumprimento na rua como fôssemos amigos de infância, já meio esquecidos um do outro, onde a conversa precisa ser encurtada para não chegar na lembrança. e a lembrança é como um bafo na janela, esmaecendo até que apaga a alguns passos de distância. como que uma música calma a acompanhasse no seu momento de perder-se - trilha-sonora-lembrança-esquecida.

já não sei o que te dizia agora, meu ser.
ainda estás aí para ouvir o que não lembro?
não.

fuja logo: não valho a pena.

12.4.10

XÍCARA ERRADA

Não sei, acho que te ver me dá saudade. esse olhar que me acompanha sempre pelas costas como um sim que tens medo de ser. (Eu nunca precisei pedir perdão porque tu sabes que é sempre como se eu bebesse o veneno da xícara errada; enquanto podes te dar ao luxo de ciúme - teus olhos, não negue - fico eu a calcular palavras, a sonhar sempre serenos dias de um verão onde me ofereces um sorriso e tua mão e que então rimos dessa distância tão próxima que andava ao nosso lado; até vejo tua risada de ter me negado sempre, à espera de que meus hormônios aissem como flecha, sempre errando o alvo) Nós sabíamos mais fácil negar isso, que tua liberdade estava presa a esse medo da inconstância como companheira e que meu riso fácil já cansara de transmutar-se em uma ou duas lágrimas quase esquecidas. Puxo teu braço, vou dizer que nem todas as capitais tem o DDD que termina em 1, como tu me disse Veja Floripa, meu bem e então tu vai saber que também erra e que talvez esteja errando a mim também Tem horas? Sete e quinze, dizes.

E seguimos em direções opostas, os rostos dançando um balé sincronicamente assimétrico, sem jamais se encontrar. Até que a vida nos separe.

5.4.10

SEM PONTUAÇÃO*

ele falava sem pontuação
não que falasse muito
era de poucas palavras e nenhum ponto
o que me fez pensar na entonação de uma frase que acaba sem ter um fim

talvez ele ainda ouça os ecos de último boa noite
oite, oite, oit


*isso não é um poema.

29.3.10

NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA CAIXA

Todos, menos ela, riram quando tropeçou na caixa. Pensou que maldita caixa e, tivesse mais de dez anos, talvez parafraseasse Drummond e diria no meio do caminho tinha uma caixa, tinha uma caixa no meio do caminho, mas não os tinha, portanto não o fez.

Ainda extaseada pela humilhação a que a caixa lhe submeteu – ouvia-se mesmo os meninos com suas risadas altas e alguém gritou Gorda! no outro canto do pátio; baixou as mãos ao solo e recolheu o objeto, num instinto e, cabeça baixa, bochechas róseas, saiu em direção à casa, passo apressado de quem tem medo da vida. Duas quadras e a casa lhe espera. Primeiro o portão. Então a porta. A escada. O quarto.

Já na segurança da cama, distante até dos olhos da empregada que em breve diria que nem te vi chegar e logo mais tá com fome? Se quiser trago algo pra tu comer Não, não tinha fome. Então abriu a caixa; a maldita caixa que estava no meio do caminho. Com a caixa, um sorriso. Apressou-se em escondê-la – última gaveta do armário, atrás do uniforme da escola marista. E jurou que aquele seria seu segredo.

22.3.10

READOLESCER

É sabido que, em idade avançada, as pessoas voltam a agir como crianças. De início, apenas a teimosia dos pequenos dá as caras, quase tímida, até que, pouco antes da morte lhes presentear com uma derradeira visita, chegam novamente ao uso de fraldas. No além, talvez, voltem a mamar em tetas imaginárias. O que raros comentam, porém, é que, antes de voltar à infância, uns passos antes de tornarem-se realmente anciãos, há os que fazem uma rápida incursão pela adolescência.

Foi assim com meu pai, depois de anos a acompanhar a adolescência dos três filhos, cujos amigos viam em nossa casa reduto seguro para as mentiras contadas aos pais. Acompanhou assim toda uma geração que fumava escondido dos pais, e acostumou-se a fazer segredo sobre uma ou outra vez que as amigas chegavam bêbadas em minha casa.

Mas, há algum tempo, quem adolesceu foi ele.

Fumante convicto desde antes de minha chegada ao mundo, o pai parava de fumar quase todos os verões e, em quase todos os verões, era definitiva sua decisão. Certa vez, a disposição vinha acompanhada de algum ato heróico, como jogar uma carteira ainda repleta de cigarros fora; noutras, era seguida apenas de silêncio e percebida por nós somente quando lhe pediam um cigarro e ele respondia sem certeza na voz que não fumo mais.

É notório que seus curtos períodos de não fumante eram seguidos de humor instável e excentricidades: segurava cigarros apagados na mão, usava adesivos de nicotina, chicletes diversos e toda sorte de estratégia para esquecer que não estava fumando. Ao fim do primeiro mês de abstinência, reuníamos sem querer na cozinha com olhos cúmplices, sem nada dizer, mas que todos sabíamos o significado. Era um apelo silencioso para que ele se entregasse novamente aos braços do tabaco.

O último verão, porém, foi diferente. Decretou, pelo sexagésimo verão consecutivo (posto que não consigo imagina-lo, nem criança, sem o cigarro em mãos) que havia largado o vício. Uma nova variedade de chicle de nicotina passou a freqüentar a casa, atestando a seriedade do propósito. Mas eis que, de uma hora para a outra, passou a sair no meio da noite para ver as estrelas. Voltava alguns minutos depois, o cheiro de cigarro encruado ao corpo.

Comentei com a mãe, um dia, que comportou-se e me fez comportar-me exatamente como a mãe de um adolescente faz: finge que não sabe, disse. E passamos todos a fingir, então, sustentando o teatro. Às vezes, para incutir-lhe vergonha, comentávamos em frente a amigos sobre sua vitoriosa deserção em relação ao tabaco. Ele bebia um gole de cerveja e ia ao banheiro. Na volta, o cheiro inconfundível o acompanhava sempre.

Hoje mantemos a farsa, imaginando secretamente o orgulho que ele carrega, de enganarnos há meses. Mas ainda esperamos o dia em que, sem pressa, trocará a nicotina por um pace de fraldas.

15.3.10

EU, TU E O GATO

De repente a gente estava numa banheira, eu, tu e o gato. não sei mesmo o que gato fazia ali, só sei que ele tinha o olho assim, mais amarelo, como o olho dele é. eu não conseguia saber o que tinha na banheira, acho que lama, eu disse, mas tu não escutou - nem na banheira tu escutava, acho que tu ouvia música, mas eu não sabia disso. e o gato se mexia, como afogando, mas nenhum de nós lhe deu atenção, como nunca daríamos atenção, do jeito que fazemos quando ele roça tua perna ou pula no meu colo, implorando carinho. mas agora ele se afogando e não fazíamos nada também, porque tu escutava música, eu acho, embora não soubesse, e eu pensava o que tinha naquela banheira em que nos encontrávamos e nenhum de nós estava envolto em nenhum processo mental filosófico que dissesse porque estávamos naquela banheira com o gato que se afogava a nossa frente sem que tivéssemos o trabalho de retirá-lo de lá. (Era uma bonita morte a que assistíamos e não havia nenhum motivo aparente para acabar com ela e transformá-la novamente em vida) então eu disse, merda! e nem tu, nem o gato, escutaram. ele estava preocupado demais em se afogar para se importar com o conteúdo da banheira que era agora nossa morada. o cheiro era de merda, definitivamente, e eu não sei como não percebera antes - no princípio cheguei a pensar em chocolate e, por sorte, não provei-lhe. eu sorrio desses desastres do meu olfato, já quase perdido, e de ver o gato assim, desfalecendo aos poucos, perdendo a vontade de lutar e quando eu acho que ele vai desistir, ele tira do esôfago um som que era mais que morte, um som que interrompe até a tua música e eu penso que não quero que tu fique brabo porque o gato está morrendo sozinho e dessa forma não convém que tu o ajude, sujando tuas mãos, que já estão sujas de merda, de sangue também. mas acho que tu percebe que não seria sensato fazê-lo e volta a tua música. e eu busco outra coisa para me questionar agora que sei o que inunda aquela banheira, enquanto o gato continua a morrer.



(eu sei que secretamente tu olha meu corpo contraído, o olho mexendo agitado e torce para que sejam logo sete horas, para que seja o despertador e não tu a me tirar estas inquietações)

8.3.10

DIA DE ADEUS

Então não funcionava, por mais que tentasse. E ele foi todo diminuindo, como se fosse feito de músculo - músculo-flácido-corpo-inteiro. Foi amarelecendo, não amarelando, amarelecendo, como quem não quisesse mais ser. Eu abracei ele como se fosse criança, um filho talvez que eu não quis ter mas que me sabia responsável e a diferença de idade existia, mas era pequena. Perguntei se podia acender a luz e ele pediu que não, que ficasse abraçada assim. tinha medo, não de mim, mas de um amanhã que viria dias depois. um amanhã que conviveu conosco por três dias, tão poucos e longos estes. prometi continuar abraçada, mas queria dormir. pediu pra não largá-lo - assim fisica e não sentimentalmente. eu disse: amanhã. houve silêncio e talvez ele pensasse no quanto aquela noite que não havia sido poderia decidir os próximos dias, poucos que eram. repeti: amanhã, nos vemos amanhã.(...)? - numa pontuação que não cabe usar aqui, mas uso, por única que expresse a entonação. eu ouvi ainda, quase dormindo um amanhã falado com voz de sorriso. de repente sobraram as nuvens, aquelas nuvens. e novamente nu vens ao meu alcance com tuas mãos que matam aranhas e teu sorriso de dentes de leite. amanhã sabemos, é dia de adeus.

1.3.10

SEM POESIA

hoje eu acordei sem poesia
como se fosse um dia qualquer de dezembro
mas hoje é 27
e dezembro já foi
então, como poderia ser hoje um dia qualquer?

mas os fato são apenas estes:
hoje eu acordei sem poesia
não há o que concordar ou discordar
é como de repente aquela árvore que balança
(e sequer relativizaríamos a dizer que, para a árvore, quem balança é o mundo)
somos fatos: eu e o balançar da árvore e, ainda, talvez, o dia de hoje
embora, para dizermos que hoje é 27, teríamos que dizer que é 27 para o calendários cristão
posto que há ainda alguns lugares que seguem outros calendários

hoje eu acordei sem poesia
e eu li teus versos e disse pra mim que não entendi
teus versos sempre tão simples
e eu incapaz e lê-los

então, para fingir que a poesia ainda morava em mim
tive assim que desabafar em forma de verso
como se houvesse resquícios ainda dela
talvez na sola da alma

8.2.10

DO QUE UM PEDAÇO DE PÃO

Ontem, pela primeira vez, tudo fazia sentido. Eu deitei no colchão, olhei o teto e tudo estava ali - e lembrei de quando achei um poema escrito na adolescência que falava sobre quando minha vida era bem mais simples do que um pedaço de pão, e essa frase fez sentido para mim, como se eu adolescesse de repente. Então fechei os olhos que ocultavam um sorriso de felicidade serena.

Ontem eu simplesmente soube que seria feliz para sempre, como conto de fadas. Eu descobri que nem todo sentimento escoa em três dias - só todos os outros, esse nunca.

Ontem eu disse que sabia o que queria - e dessa vez era verdade, não desculpa de uma fuga em outro rosto, como sempre fora antes. Eu disse sim sabendo que aquele sim significava amanhã e depois e semana que vem ainda. E eu não senti medo daquele sentimento por ser tão leve que era meu - não uma invasão bárbara como eu me acostumara a viver as coisas.

Mas quando abri os olhos, eu olhava para um teto que era só teto e aquela frase não fazia mais sentido algum. Que a minha vida era dessas de ficções modernas, que só valem a pena enfrentando monstros. Aquela calmaria não me era paz.

E é por isso meu bem, que acabou.

1.2.10

ATALHOS DE FINAIS FELIZES

Tenho um estranho carinho
pelas coisas que não dão certo
Toda lembrança escondida
de um futuro prometido em passados imperfeitos

É como se eu sempre soubesse
É como se tu quem me disse
Que essas coisas que acabaram
São atalhos de finais felizes

18.1.10

DEUS EX-MACHINA

Tu é apenas meu personagem e a ti não são permitidas vontades. Não tens sede ou fome e sequer te libero para sentir qualquer outra coisa. É preciso que entendas que, em tua condição de personagem, tens o dever de carregar coerência interna nos atos. As aulas de português ensinaram; o livro do Paulo Guedes ditou.

Portanto, te peço que não mordas mais em carnificina teu lábio inferior diante de minhas descrenças. Sugiro a ti, como a um personagem raso, que altere o discurso neste e naquele diálogo que se encontram na 5ª linha, 8ª dose.

Entende, é tudo teoria literária: para ue tal declaração fosse verdade, era preciso que houvesse um elemento anterior a confirmar. Uma dessas coisas que soam em silêncio na cabeça do leitor e o fazem acreditar.

(senão, essa paixão é deus ex-machina)

11.1.10

O que teu sorriso faz nesse rosto que não é teu? Me diz. Devias ter patenteado esse sorriso jovem que tu tens, de 28 dentes alvamente lisos - os sisos extraídos já, te dizendo adulto, o que és só em idade. Mas esse sorriso me invade o ônibus e sorrio-resposta como te faço. Para disfarçar o medo, peço a parada ao cobrador; pergunto as horas ao menino ao lado; me ofereço para segurar as frutas da senhora que me empurra com a coxa e me massacra com a sacola do Zaffari ainda cheirando a plástico novo. não, obrigada, ela diz com voz de receio que eu roube suas maçãs. seus frutos proibidos meticulosamente etiquetadis um a um para que em nada lembrem o pecado original. De repente acho que amo aquela mulher que sente repulsa por eu estar escrevendo em um ônibus; e a amo pelo único motivo que ela não carrega teu sorriso - não há sorriso algum naquele rosto pobre, surrado de vida, que deve manter na boca bem menos que teus 14 pares de dentes; a amo por saber que aqueles cabelos castanhos nunca serão como os teus: negros
negros
negros; que a pele castanha não será a tua, ainda alva de inverno; que o olho verde não será o teu, infinito profundo, buraco negro
(negro,
negro)
E a amo mais que tudo por não carregar teu sexo, teu cromossomo Y que sempre persegui; amo e sei que amo pelo simples fato de que quero carregar sua sacola repleta de maças e tomates e um provável mamão, para a digestão.
Amo como a um menino órfão, por quem só sinto amor pelo fato de ignorar sua existência.
Amo porque falta teu sorriso, e sem teu sorriso não haverá amor.

4.1.10

BICHO DE ESTIMAÇÃO

Se houve sangue? jorrou nas paredes mofadas do apartamento esse bucólico líquido da vida, primeiro preto, depois verde e só então vestiu-se de sua tradicional cor de carne. Como estivéssemos nus, achamos engraçada aquela nova pintura das paredes - mesmo que o cheiro ocre da morte enjoasse um pouco o ambiente. Que fazemos agora, eu disse, mas tu já te ocupava em uma tela, misturando os tons daquele óbito. Coloquei uma música para te ajudar a pintar. Chico Buarque...? teu tom é de crítica, ele adorava Chico, eu respondo, enquanto começo a puxar o corpo em direção à janela, pois até os cadáveres precisam de um pouco de ar e o cheio de morte inunda o ambiente. trabalha amanhã, tu perguntItálicoa. trabalho, mas vou mentir que estou doente, preciso levar o defunto para passear. Mas não te digo isso, pois sei que vais reclamar que estou mimando demais o cadáver. Respondo apenas sim. Tu diz acho que vai chover e eu penso que, se chover, eu trabalho, pois não convém passear com mortos na chuva. Eu arrumo um colchão na sala para ele - é preciso descansar - mas antes lavo a louça para que o sangue não fique encruado. Ele não gostaria de ver sua louça italiana suja pelo próprio sangue.