12.1.09

O QUARTO

Nunca soube como parei aqui, mas o fato é que aqui estou há tempo que não conto.

No início, eu era solidão. Fazia da saudade a única companhia. Logo, as paredes úmidas aprenderam a me confortar. Todas as noites, num abraço, protegiam do vento que a janela ameaçava. Durante o dia, era a mesma janela que me brindava com a vida de uma ou outra flor, às vezes um pássaro, nunca pessoas. (Lembro o dia em que o uma borboleta entrou no quarto – como vivi!)

Em tempos, era a falta de comida que me assombrava. Às vezes a falta de sexo. Às vezes a de higiene. Tudo resolvi. Comia baratas, lagartixas, uma ou outra fruta que a janela presenteasse, pendurada num galho ao meu alcance. Aprendi o prazer que existia em mim e mais ninguém. À sujeira, acostumei-me, não mais percebia cheiros saídos de meu corpo, não mais me ocupavam as doenças. Estava tudo fora do quarto. Ali, não havia resquício de humanidade, não fosse eu, já tão inumana.

A verdade é que acostumei-me à privação. Preferia o cárcere particular que me era ofertado naquele quarto, do que o mundo barulhento da rua. Ali, tudo era ao alcance da mão, a vida resumia-se no som do balançar de folhas na janela.

Chances de sair nunca faltaram, mas fugir da simplicidade em que me encontrava para um mundo equacionado a cada milímetro não seria saudável. Nem a solidão ou a ausência de comodidade me motivavam a pular a janela. Era só ela minha televisão, era nela minha existência.

De vez em quando, vinha a tempestade a lembrar-me que o mundo existia além de mim.

5.1.09

ROLETA RUSSA

Se tivéssemos morrido ali, seríamos felizes para sempre. Mas ele disse que não gostava do jogo. Quis parar – nem havíamos começado. Eu peguei a arma.

Ele tinha o rosto de uma cor confusa entre medo e raiva. Do auge de seus quarenta anos, invejava a inconseqüência de menina que eu tinha. Ele pensa nos filhos – o olho denuncia. Se soubesse que havia outro rebento, em formação dentro de mim, que faria? Pagaria o aborto, sumiria da minha vida, nunca mais notícias.

Miro no risco de sobrancelha que sobra entre seus olhos.

Eu não sabia o que tinha me levado a inventar a brincadeira. Mas eu sabia o que me motivava a insistir. Volto a arma para minha cabeça e puxo o gatilho. Tua vez.

Ele berra. Eu digo para ele que vamos ser felizes para sempre e o irrito mais. Ele tem medo, confusão. E sua angústia me dá mais vontade de ser deus, a arma na mão fingindo brincar com a vida. Aponto de novo para seu rosto. Ele pára, cega, berra. É uma galinha sem cabeça, insistindo em viver. Puxo o gatilho.

Não goza a percepção de ainda estar vivo, sequer a entende. Faria qualquer coisa por mim agora. Larga a família e foge comigo? Largo. Eu não queria que ele largasse. Direciono o cano da arma para a ponta de meu nariz e atiro novamente e novamente nada acontece.

O profissional bem sucedido, o pai de família, o amante sagaz, todos agora se renderam ao rato de laboratório em que ele se transformou. Tudo à mercê de mim. Volto o trinta-e-oito para seu semblante amedrontado e aperto mais uma vez o gatilho. Ele não sente a sensação da sobrevivência, só percebe a morte eminente.
Miro em mim e disparo outra vez, com a certeza de permanecer intacta, para zombar do homem desconstruído em minha frente. Enquanto ajoelhado ele implora pela vida, aponto para o topo da cabeça e lhe dou novamente a impressão de presenciar a morte, mas ela não vem ainda. Enquanto a mão direita empunha a arma, a esquerda seca o pranto que lhe escorre a cara: Calma, são só mais duas agora.

Nos olhos, ele denuncia querer minha morte, não pela angústia que eu lhe causava, mas por ser a única forma que tinha em mente de continuar vivo. Rodo a arma com a mão e disparo bem entre meus olhos. Sorrio. Tua vez! Vulgarmente amedrontado, o choro lhe toma o rosto, a angústia pesa as costas. Vomita. Transita num infinito entre implorar a vida e carregar em insultos contra mim. Ele não cogita a fuga. O raciocínio não lhe permite concentrar em outra palavra que não seja morte. Pede por favor, com grossos fios de baba lhe marcando a boca. Está em condições de aceitar a vida com qualquer privação, desde que a tenha.

É o ponto onde eu precisava chegar. Deixo a arma descarregada no chão, seguro seu rosto, e digo: estou grávida.