Lindo, daquelas belezas antigas, pele e olhos claros, sorriso criança, cachinhos dourados no cabelo. Lindo do tipo que não me adiantava nada, estilo príncipe encantado que traz café na cama, liga para dizer boa noite e fala coisas bonitas oito vezes por minuto. Ele faz planos, tem carro, dinheiro e vida pela frente, nada do previsto no meu manual de instruções.
Choro, berro, grito, jogo o controle da TV na cara dele. Mas aquela perfeição falsa era totalmente inabalável, ele parecia não estar disposto a se enquadrar no meu estilo de vida sem ontem e amanhã. Já comprou a neosaldina quando me viu começar a beber, trouxe o casaco que esqueci de trazer e me levou até em casa para eu não me perder.
Ele proibia metodicamente todas as manifestações da inconseqüência à qual eu sempre fora tão apegada. Ele entendia todas as coisas que eu fazia, estudou sistematicamente os mecanismos do meu funcionamento, descobriu a lógica que nunca imaginei que pudesse existir por trás de mim.
Fui desvendada e humilhada de uma forma quase inocente, como uma criança descoberta em uma mentira. Precisei permanecer junto a ele, pois ele nunca havia reparado nos danos irreparáveis que causara em minha personalidade. Fiquei a seu lado para que ele nunca pudesse refletir sobre todas as descobertas que eram dele e só. O objeto de estudo: eu. Suportei saber que ele me conhecia tão bem, remediando-me com o fato de que eu jamais alcançaria tal grau de auto-conhecimento. Mas, de alguma forma, o fato de ser previsível incomodava-me. Planejei formas incontáveis de fugir desta previsibilidade que tanto me agredia, mas soube logo que o ato de planejar já me tornava comum, igual aos outros, sem surpresas.
Ele jamais esqueceria de sua descoberta mais incrível. Eu era o rato de laboratório que ele perseguia, através de beijos e carinhos, traçando metodicamente o manual de instruções no qual ele nunca esteve incluso, mas incluía-se assim, por traçá-lo e agora eu perdia completamente o controle de minha vida, que pertencia mais a ele do que a mim, eu jamais entenderia o que ele fizera com minha personalidade, de que forma eu havia sido anulada em poucos meses de convívio, reduzida a pequeno objeto de estudo científico, e essa relação de criador e criatura agora me perturbava mais, pois eu sequer sabia se eu já havia existido antes de ter sido realmente descoberta, como se fosse alguma lei da física ou algo assim. Eu tinha medo de um dia figurar toda minha previsibilidade em algum livro de ciências do segundo grau, distribuído gratuitamente nas escolas públicas da cidade, eu não queria mais ser isso que eu era ou que eu não era, pois negava-me a me descobrir no que eu havia sido descoberta.
Amei, amei mil anos sem amor algum, e com duração de tempo que não conto. Amei a prisão à qual eu estava submetida: ele, meu criador, descobridor, o cientista maluco que traçou todos meus ideais de vida antes mesmo que eu os tivesse vivido ou sequer idealizado. Eu era agora um mecanismo frágil, uma lei rara e óbvia, um computador cujas ações eram limitadas por um número pequeno de combinações possíveis de serem realizadas e funcionando segundo uma equação simples e pré-estabelecida à qual eu nunca teria acesso, eu não queria ter acesso à minha alma, à minha natureza sinistra e linear. Fui escrava de sua perfeição divina, a perfeição que ele calculou nas dimensões exatas para caber em minhas pequenas pretensões de vida e em meu manual resumido, traçado por ele.
Hoje, diploma, filhos e sorriso no rosto. Tento lembrar quem eu era, mas eu nunca soube. Só o que me inquieta é saber agora exatamente quem sou.