30.7.07

EU E A CORDA

Tentei soltar as cordas que sufocavam, mas o nó parecia maior do que eu. Não afrouxava, era incapaz de me deixar respirar. Mas ninguém ao meu redor estava preocupado com as minhas aflições. E eu olhava em volta diversos rostos largos e com sorrisos uniformes, feito fotografia de porta-retrato. E me atingiam aqueles sorrisos cortantes, denunciando a perfeição de uma vida rasa, que eu tentava invejar, mas faltava-me o ar até para isso. A corda não soltava, e eu era incapaz de me rebelar diante de tanta felicidade inerte ao meu redor, mas se não rebelasse a corda não rompia, e eu sabia disso e teimava em aceitar, também inerte, a condição de prisioneira. E foi tanto que a corda acostumou-se, e acostumei-me a ela. Atamo-nos, feito casamento sem cerimônias, a nossa relação de extrema dependência. Que ela só era útil enquanto servisse para privar-me da liberdade de respirar o ar que eu nem lembrava o gosto que tinha. E eu só sabia viver em meu cárcere particular, como animal privado de vida selvagem. Ensaiava pulos imaginários, fugas deslumbrantes, mas via-me prisioneiro de mim, e fugir já era assim estar sendo enganado pela minha própria ambigüidade – então sabia, que já sabia de antemão, que meu lugar era atado à corda que restringia todas as possibilidades transformando-as em apenas uma. Era pela diversidade de vôos que teimava em não decolar, tantos eram os destinos, que transformei meu único destino e ambição em ser aquilo que eu já era, mesmo sabendo que eu nunca fora aquilo, como uma equação mal resolvida. Mas a corda confortava sufocando, e prendia-me apenas a mim, fazendo com que eu sequer distinguisse quem eu era de quem eu era. Mas todos os rostos redondos me olhavam com sua insensatez digna de jovens mortais e brincavam de apertar ou afrouxar a corda. Mas eu a queria só para mim, sem variações. Os seus sorrisos transgrediam todos meus limites de contato com o mundo externo, e machucavam como agulha de vodu.

Até que fechava os olhos e ficava só de novo com meu cárcere privado. E toda aquela felicidade ingênua se apagava diante de mim, roubando-me a culpa, num fechar de olhos, por ter aberto os meus um dia.

23.7.07

JOGO DE ESGOTO

O problema é que a gente aprendeu a jogar. A gente cansou de tudo que foi sério um dia e afogamos na privada todas as lembranças bonitas que tínhamos, pensando que ali estava a liberdade, sempre tão procurada por nós. Mas, afogando as lembranças, não deixamos que elas morressem, e sempre que era preciso lembrar, tínhamos agora que descer até o esgoto para trazer o pouco que um dia tivemos a tona.

Aprendemos a andar com os ratos, e eles, com ternura, nos ensinaram suas artimanhas sujas de jogar com as pessoas. Agora jogávamos, rápidos e destemidos, risada contida e silenciosa. Mexíamos nossas peças num tabuleiro imaginário e inimaginável com toda a destreza-cautelosa que a vida subterrânea nos proveu.

(Todo mundo sempre joga aquele jogo que tem fim e um campeão, mas nós jogávamos um jogo em que as duas partes eram tão perfeitamente insanas, eram tão completamente desprovidas de vida real, que o jogo tomou proporções inesperadas.)

E completou-se um ano, cinco, oito. A jogatina perpetuava-se de uma forma que nunca imaginaríamos, o tabuleiro havia sido percorrido em todos os seus cantos e recantos escondidos, havia sido ampliado a partes que não existiam. E nós dois conhecíamos o estilo do outro de jogar, e cada um jogava o jogo contrário ao seu, jogando baixo – jogo de esgoto – como aprendemos no início. Ninguém queria ganhar aquele jogo, pois enquanto continuasse a brincadeira, a vida ainda tinha um motivo. O eterno jogar fazia de nós prisioneiros da liberdade que buscávamos antes. E já nem havia antes ou depois, pois as memórias mais distantes ficavam sempre no esgoto, mas não tínhamos mais tempo de buscá-las, pois vivíamos agora em nosso esgoto particular, sem tempo de buscar outras podridões que não as nossas próprias. O nosso tabuleiro transformou-se em casa para os ratos, ninho de sujeira, e não víamos. Éramos incapazes de ver qualquer coisa além dos trâmites relacionados ao vaivém de nossas jogadas calculadas. Nada mais era natural, pois tudo que aprendemos serviu apenas para mostrar que havíamos aprendido e que conseguíamos ainda permanecer com a brincadeira de jogar, sabendo que, sendo os dois exímios jogadores do que teimávamos em fingir que não era real, aquilo duraria para sempre, e durar para sempre era invadir a nossa liberdade de uma forma que antes nunca havíamos imaginado, mas agora estávamos completamente presos a essa perpetuação, e não havia a chave da cela, e as algemas não soltariam nunca.

Mas a sujeira em volta crescia, a podridão se amontoava ao nosso redor. Criávamos colônias de fungos gigantes, sem perceber, e os ratos se proliferavam com uma rapidez inesperada. Estávamos em um campo de lama, e quase não havia mais espaço para nosso jogo em meio a todo aquele podre que nos rodeava. Até que um dia amanhecemos tragados pela podridão que tanto cultivamos, e não havia mais espaço para o jogo, nem para nós, não havia mais espaço para nenhuma lembrança esquecida no esgoto, pois ir até o esgoto seria alcançar um nível muito superior ao que nos encontrávamos agora. Simplesmente não havia. E tivemos que desaprender a jogar.

16.7.07

AO CONTRÁRIO

Abri a geladeira e só havia uma vodka pela metade, que há tempos estava ali intocada. Sequei o sangue que escorria do nariz com um guardanapo sujo que estava na mesa, e continuei admirando a vodka, que é de álcool que meus dias e meu sangue são feitos. Puxei a garrafa e um banco, e deixei meu corpo sentar sozinho, quase sem direção, mas sabendo que ia cair direto no banco que eu havia puxado.

Trago um pouco daquela garrafa, e o gosto da vodka me entope as veias, trazendo uma energia sobrenatural. Me vingo física ou moralmente? Sempre a mesma dúvida consumindo corpo e mente. Ele ainda estava na minha cama, o vinho tinha feito com que ele dormisse mais do que imaginava – talvez fossem os calmantes, a gente nunca sabe. Tinham facas na cozinha, mas uma traição não valia a sujeira no apartamento. Depois horas para limpar todo o sangue, as unhas teriam que ser retocadas, mais dinheiro gasto em manicure, tempo desperdiçado, coisas do tipo.

Me chamaria de louca, alcoólatra, ia arrancar a garrafa da minha mão - se ela ainda estivesse na minha mão - ia mandar parar de chorar, parar de berrar, parar com tudo. Depois abraçava e cantava aquela música que ele sempre canta, e eu ficava calma de novo e bebia de novo e fazia tudo de novo, como sempre fiz. Ele ia rasgar meus planos outra vez, só para me dar o trabalho de planejar tudo de novo, ia brincar de compreensivo e tenta conversar. Ia negar meu beijo e meu pedido de desculpas, dizendo que ia acontecer de novo, porque tudo sempre acontecia de novo. Eu ia bancar a mulher traída, beber mais, xingar ele, fazer ameaças, jogar objetos, sair batendo a porta e dizendo que nunca ia voltar. Ele não daria bola, nem iria atrás. Ficaria limpando o apartamento pois sabia que quando o dia amanhecesse eu voltaria com cheiro de droga impregnado no corpo, rosto inchado de chorar e de carona com algum desconhecido que tivesse topado pagar algumas cervejas para mim durante a noite. E quando eu voltasse ele abriria a porta, o café pronto - está sempre passado - fingiria que não me viu, pegaria o jornal, sentaria no sofá, abriria o saco-plástico-que-envolve-o-jornal e fingiria ler as notícias. Depois de um tempo me olharia e mandaria que fosse pro banho, tirar aquele gosto de outros do corpo. Eu obedeço nessa hora, que não é momento de discordar. Depois durmo e sei que haverá algum outro motivo para tudo acontecer de novo - e se não houver motivo eu lembro de novo da traição antiga, que é o que tenho feito atualmente.

Mas ele acordou e perguntou o que eu fazia ali, nunca chegava antes dele acordar. Ele esqueceu-se que dessa vez eu não havia ido embora, que não tentara lhe bater ou ameaçar. Ele esqueceu que dessa vez aceitou meu beijo, e retribuiu também. Não lembrava que tudo havia transcorrido tão bem que fizemos sexo pela primeira vez depois de quatro meses, que eu tinha largado a garrafa quando ele pediu que eu largasse, que quem tomou o vinho inteiro foi ele, dessa vez. Mas ele só me olhava com olhos incrédulos, perguntou do jornal Em cima da mesa , perguntou do café Passado, forte como tu gosta , perguntou se eu já tinha tomado banho, mas dessa vez não havia gosto de outros para tirar do meu corpo. E dessa vez quem chorou foi ele, e eu não quis largar a Vodka para abraçá-lo, e eu não lembrava da música que ele cantava para me acalmar, pois eu nunca tinha prestado atenção nessas besteiras infantis que ele tinha. E não havia mais ameaça nenhuma que eu quisesse fazer, não me vinha a mente nenhum xingamento e ele estava indefeso demais. Tinha sido tudo tão ao contrário dessa vez que saí, sem bater a porta, bem antes do anoitecer, levando só a garrafa quase vazia de Vodka. E não voltei.

9.7.07

LUÍSA

Está linda, olho ou não olho? olhei, tarde demais, preciso dizer alguma coisa, o que eu falo? a bunda está maior do que antes, amo ela, acho. Mentira! Vou dizer que comprei o CD do Chico, ela é mulher, mulher adora o Chico, não falha. Comprei aquele CD do Chico ontem. Qual? Aquele que tem uma música com teu nome. Ele não tem nenhuma música com o meu nome. Estávamos há um mês separados e eu já não lembrava o nome dela, ou talvez eu sempre tenha achado que ela se chamava Luísa, de onde vinha aquele Lu, então? Luana? muito puta. Lucrecia? eu nunca poderia amar uma Lucrecia. Lurdes? nunca, nome de velha virgem, e ela não era nem velha nem virgem. devo ter amado uma puta mesmo, e nem amei que me conheço e sei que não amo mas digo que amo porque é mais confortável pensar que sinto o que os outros também fingem que sentem, e no fim todo mundo sabe que o sentimento nem existe. Lúcia? Luciana? pareciam nomes tão mais normais... mas aquela risada de puta, ela tinha risada de puta, era Luana, só podia ser Luana. ai, que nojo me dava de ter uma Luana em minha vida, como é que eu poderia apresentar uma Luana pra minha mãe, conheço o olhar de reprovação: Luana, filho, sabe onde ta te metendo, né? Depois não diz que não avisei... Lucrecia, por favor, se chame Lucrecia, daí nem finjo mais que amo, facilita tudo, não apresento nem pros amigos, não imploro de novo para voltar, nem sei se quero voltar, se for Lucrecia não quero, ninguém merece perder uma vida com uma Lucrecia ao lado, acordar ao lado de uma Lucrecia, péssimo para a auto-estima, qualquer um é capaz de conquistar uma Luísa-do-Chico, uma Luana-puta. só um ser patético casaria com uma Lucrecia. não acredito que falei em casamento, será que falei alto ou só pensei? qual o nome dela? o padre certamente falaria o nome no altar, daí era a hora de descobrir quem ela realmente era. a amiga se aproxima, definitivamente supermercado não é um bom lugar para retomar um relacionamento, o tamanho dos peitos da amiga é maior do que o da cabeça, ela usa decote, blusa vermelha e corrente prata, ela usa peitos enormes, 300ml de silicone, no mínimo Vamo, Ju? tem sotaque, não sei de onde é aquele sotaque, mas é definitivamente acentuado, amo sotaques, o que eu digo? penso num ménage, mas não sugiro, penso nos peitos, no sotaque, no nome - era Ju e não Lu - todos meus planos de casamento desfeitos por um par de peitos gigantes, empinados e simétricos. Ménage, ménage, ménage. Elas se viram, nem dão tchau, com certeza pareço um imbecil, e continuo parecendo, como todo homem que se preze, diante de um par de mulheres, e dois pares de peitos. Por ela é que eu faço bonito Por ela é que eu faço o palhaço Por ela é que saio do tom...

2.7.07

RECICLADO

Tinha o gosto do desgosto reciclado e provei de novo – e fiz de novo cara de quem não gostou – e continuei acreditando que não tinha gostado, apesar de conhecer aquele gosto tão bem como conheço meu próprio paladar. E tava estragado, eu disse que tava - mas é que era requentado, daí não soube comer com o gosto que o ontem tem, e fingi que tinha feito na hora, mas a gente sempre sabe que é sobra. Aquele gosto de geladeira, meio gelado frio requentado, quando a gente já não sabe mais qual é o calor que aquilo tinha antes de virar resto.

Mas o tempero mudou, e meu paladar não estava preparado. Enchi o olho – muita cebola, muito alho, muito molho? Penso em cuspir, vomitar, mas não faço, não sei mais como fazer, talvez nem queira e disfarce. Sobe à goela, eu ignoro, insisto em digerir, mastigando devagar, com aquele prazer que por vezes toma conta da gente, e insiste em nos fazer odiar a nós mesmos.

Vi no momento em que eu já pensei que não existia mais hora, só que agora eu sei que o tempo é bem mais relativo do que a gente pensa, e fingir que o ontem é agora é acúmulo de incertezas – e se a gente pudesse voltar no tempo não voltaria, a gente nunca volta, nunca voltou até hoje.

Tinha a forma que meu pior pesadelo não formulou, criou ali uma úlcera imediata, que álcool nenhum cicatrizava. E assim, veio outro e outros vieram e virão, agora pratos novos, feitos especialmente para a ocasião. E brinquei de perfeição, pulando nuvens disfarçadas de riso e dançando trechos inexistentes de felicidade. E ri mil vezes aquele riso que eu conhecia e trazia sempre guardado comigo – a gente nunca sabe quando precisará tirar do bolso o sorriso trancado. Andando ainda naquele céu que criei para mim, com todas as cores de um arco-íris desenhado em hidrocor, apaguei tudo que não existe – não existe mais, apaguei. E agora, ficou só o gosto do desgosto reciclado. E a dúvida sobre comer os restos de ontem ou deixar morrer de fome.