27.8.07

SENSAÇÃO DE SER SILÊNCIO

Ele diz que ama. Eu rio abraço nervosa sem saber o que dizer o que fazer porque ninguém nunca sabe como dizer um não pra quem sempre diz sim, eu beijo a boca que disse e que espera que eu diga também – impossível mentir essas coisas – um beijo daqueles demorados pra ver se passa a sensação de não saber o que falar, eu fecho o olho tento e não consigo ser aquilo tudo que não sou mesmo que eu quisesse ser naquele momento, eu penso filosofar sobre o sentido do amor sobre a diferença da paixão do carinho da carência procuro citar algum autor algo bem brega pra descontrair e rirmos juntos mas a inspiração não vem, eu lembro quando amei também alguém daqueles amores inofensivos que a infância traz e duram anos e como não fui feliz naquela época e como foi saber que nem sempre tudo é recíproco e como foi não lembro só da sensação de não ter sido que não foi nada boa, projeto o que aconteceria se eu dissesse um eu também mentisse não só para ele como para mim daí pra frente era aquelas coisas sem graça que os casais costumam ter como ciúmes beijinhos cobranças e programas caseiros, imagino a sensação de ouvir silêncio como resposta que ele deve estar sentindo se é boa ou pior que a sensação de ser silêncio agora que sinto, dá medo também eu quero a mãe mas não chamo que é tarde agora e o momento não é propício e que não quero parecer tão infantil quanto realmente sou para esse tipo de coisas, finjo não fingir com todo aquele dom que nunca tive para atuar e não convenço que percebo que não convenço e nem me esforço tanto em convencer na verdade, olho mostrando nem ver com ar de quem não sabe fugir que é o que quero agora e deixo transparecer infelizmente mas é tarde e sei que não dá para voltar ao momento em que ele disse o que disse. Sorrio.

20.8.07

TUDO QUE NÃO É MEU

Não precisei acender a luz porque já estava claro. E não demorei a perceber que aquela não era minha cama. Aquela não era minha casa. Do meu lado, não era mais o pinscher sempre companheiro. Tratei com naturalidade tudo que fosse natural. Busquei as roupas dispersas no chão. Olhei as chamadas não atendidas no celular. Tudo complô de mim.

Sentei na cama-que-não-era-minha e fiquei escutando a música suave que saía do aparelho de CD, também não meu. Tirei as calças que não eram minhas – sabe-se lá como foram parar em mim – e troquei-as pelas minhas, que estavam na cadeira em frente à cama-que-não-era-minha.

Ainda estava num estado entre sono e vida, quando a sensação de não possuir se apossou de mim. Aquele corpo deitado não era meu, aquilo tudo que vivi não era meu. Nada ali me pertencia, nada durava mais que segundos desfazendo-se no ar. Era tudo neblina, confusão de memória mal construída. Sumia no ar, com simples sopro de vida.

Senti o gosto prepotente do enojar-me, aquele gosto de não perpetuar que a gente sente no esôfago e não na boca. Uma queimação forte, ressaca de não-ter. Mas era prepotente, como disse. Era aquele nojo que a gente gosta de sentir, faz brincar de superior, por conseguir enojar.

Toco o corpo-deitado-que-não-era-meu. Acorda. Mando abrir a porta do quarto-que-não-era-meu. Saímos juntos do apartamento-que-não-era-meu. Me traz de volta pra casa, ajuda a fugir daquele monte de coisa que fingiu me pertencer e eu não ousei acreditar.

Mas no caminho tinha o sol brilhando forte, denunciando o dia que já havia nascido. No caminho o celular ainda tocava, um toque familiar. E vi os cachorros brincando, as casas alternando suas cores sempre claras, carros sonolentos no asfalto. Vi vida onde andei, que o caminho era longo.

Senti a sensação de tanta coisa dentro de mim, coisas que, de certo modo, me pertenciam sem querer. E o nojo transformou-se em riso. Que a ironia de trocar tanta coisa minha pelo que não me pertencia era bonita. E eu sabia que, a partir de agora, colocaria debaixo do braço tudo que é meu. E nunca mais teria saudades do que não sou.

13.8.07

LUA DE MEL

Os convidados já haviam saído, mas a sensação era de que a festa de casamento fora um sucesso. Servi um pouco mais de destilado que eu já não destingia qual era e fui deitar. Quer um gole? Silêncio. Sabe, as pessoas costumam transar na lua de mel. Alegou que eu estava bêbada. Minto que não, sem convencer. Ele ignora ainda. Pára de discutir, volta ao seu sono, sem me dar ouvidos. Ponho um CD velho dos Beatles pra tocar – ele odiava Beatles. Manda abaixar o som. Peço que abaixe o tom. Manda voltar pro interior. Digo que quero o divórcio, já. Ignora de novo e joga o sapato no aparelho de CD. Então me calo, junto com a música, que havia sido calada graças ao golpe. Ligo pra mãe, chorando. Mas ela também ignora. Me diz mimada, filha caçula, inconseqüente. Quem mandou sair de casa pra casar com um velho machista? Muito animador, ela sempre implicava por ele ser do exército. Então choro um pouco e bebo mais, que é o que resta. Ligo pro colega de trabalho, sargento Lenine. Ele sabe o que quero. Vai ao meu encontro, e nem preciso lembrar-lhe que as pessoas costumam transar na lua de mel. Não reclama de eu estar bêbada. Acata meus pedidos como ordens, e logo sou adúltera. E logo sou viúva. E admiramos o corpo, pensando que amanhã teríamos outra cerimônia em casa – mas já estaríamos longe. Antes de sair, quero olhá-lo pela última vez. Sargento Lenine consente e acompanha-me. Constatamos consternados, que, banhados em sangue, os pêlos dele grudaram na colcha de chenile. E sabemos que já é hora de partir, pois não convém a uma viúva ser vista com outro no funeral de seu marido.

6.8.07

A PORTA

Como nunca tinha atravessado aquela porta, só me restava medo. E no medo eu divagava, olhando com cuidado a fechadura, alisando tensa a maçaneta. Eu via luz lá dentro, eu ouvia o som inaudível do temer. No fim, o que sobrava era medo, duplicado, posto a sua quarta potência, que fosse. Era medo, independente de qual sua intensidade – intenso era, sei. E me restringia, o medo puxava a mão e zombava de mim, que sabia que eu era fraca demais para abrir aquela porta.

Ficava então sentada só naquele quarto escuro – este sim devia causar medo – acompanhada por fungos e insetos que teimaram em se instalar ali. Fora eles, havia um pouco de solidão desolada ao meu lado. Um quê de tristeza, sem espanto, como que uma tristeza amena, das que tomam conta devagar, e nem sequer percebemos. Mas tinha a porta também, que acabava sendo a companheira mais intensa de minha frustrada existência – existia mesmo? talvez, fosse somente o fruto de uma imaginação absurda, que criou-me para divertir-se num momento breve, e esqueceu-se de me desinventar.

Mas eu era ali, e assim via-me obrigada a ter medo da porta, que, embora fizesse parte de minha vida já, nunca fora ultrapassada por mim. Meu medo era daqueles medos curiosos que os corajosos têm, mas me faltava a coragem para saciar a curiosidade que o medo criara, então não fazia diferença alguma que meu medo fosse curioso.

Eis que um dia acordei ouvindo passos, passos silenciosamente apressados, e tive a impressão de que havia mais alguém ali, um outro ser, do outro lado da porta, semelhante a mim. Foi a primeira vez que tive a impressão de não ser único, e isso amenizou, ao mesmo tempo em que aumentou, o medo. Como teria eu vivido à margem de outro igual, sem sequer reconhecer-lhe a existência? Teria este sempre existido, ou, como eu, fora somente imaginado, talvez naquele exato momento? Mas se eu e ele havíamos sido imaginados, surgiu-me então outra angústia, pois, para sermos imaginados, era preciso que alguém o fizesse. Os passos se aproximam descuidosa e ruidosamente, medo na potência mil atinge-me. Vejo a maçaneta mexer, tudo parece meio slow motion, feito filme que nunca vi.


medo.medo.medo.medo.


A porta abre devagar, como que mágica a tivesse aberto, e sai de lá um igual. Outro como eu, mas um pouco diferente. Não falo, que nunca tive com quem falar, e nesse momento não se sabe o que dizer. Ele também cala. Aproxima-se e continua calado. Senta junto a mim, no chão úmido, com um sorriso bem mais confortável do que palavras poderiam ser. Ficamos então dividindo a umidade daquele chão que eu conhecia tão bem, e ele compartilhou comigo seu silêncio. E era esse silêncio confortável que agora tomava conta de todo o ambiente, e nos envolvia como um abraço longo do qual nenhum dos dois fazia questão de desfazer-se. Sem palavras, restou-nos apenas um intimidade confortável de quase-desconhecidos. E ali ficamos, e ficaríamos, até que outro viesse, para romper com o barulho. Ou que, quem nos inventou, teimasse em desinventar. Que agora já era tempo de termos vivido o suficiente, e o que viesse era só caminho do nosso silêncio. Tínhamos agora uma calma que era só nossa. O medo fugiu. E nossa paz fez-se terceira.