29.10.07

DA DELICADEZA DIÁRIA

Ao perguntarem se acreditava em almas gêmeas, o anjo respondeu que o problema mesmo era acreditar em almas. Não que fosse um desiludido. Longe disso! O anjo apaixonava-se ainda com o ardor com que se apaixonara há cinqüenta anos - e sempre e sempre.

Claro, há cinqüenta anos atrás tinha vinte, igualzinho à idade que tem hoje. Mas que culpa tinha de ser anjo? Era sorte mesmo, alguns morrem anjos, outros demônios.

Voltando às almas gêmeas. Ela olhou para ele com os olhinhos miúdos que tinha e ficou esperando resposta mais convincente, afinal, como é que um anjo não vai acreditar em almas? Não convive com elas todos os dias pra além do além? Ou será que o único passatempo que tinha era vagar por dentre os humanos a rir de sua mediocridade?

Sim, porque anjo não trabalha, não estuda, não se preocupa em ser perfeito porque nem quer. Ele podia só viver sua vida e brincar por aí. E era por isso que se apaixonava constantemente. Paixões eram o seu hobby predileto e o praticava com uma dedicação invejável. Prova disso era a mundana desiludida diante dele a esperar que respondesse à pergunta.

E era bonita e inteligente e engraçada e essas coisas todas que as pessoas tendem a ser quando apaixonadas. Mas apaixonar-se por um anjo é complicado, vocês bem sabem. Diz que demorou meses para averiguar que a história de que anjos não têm sexo é pura mentira.

E o anjo, depois do silêncio clerical que fizera, sorriu criança que era, beijou-lhe a face e, bem baixinho, no ouvido, lhe disse: “as almas, meu bem, mentem muito”. Esses seres do além, ela conta, tem a perigosa mania de fugir das respostas.

22.10.07

A PRANCHA

Tentei olhar no olho, mas o tapa olho tapava o único olho que minha visão conseguia atingir. Sem chances de implorar por perdão. Senti de novo a ponta da faca machucando as costas, já sangrava, eu sentia aquele calor gelado que nosso sangue tem escorrendo pela pele, misturado com medo de sangrar mais.

O pé ante pé cauteloso fazia a prancha ranger baixinho, estilo porta de filmes de terror. Mas isso não aterrorizava que era só trajeto do sofrimento maior. Eu queria me prender àquela prancha um pouquinho, pedir para a faca cortar mais as costas, pra ver se ficava cicatriz. Mas nem ia adiantar saber de cicatriz nas costas, que não enxergo elas. E a faca empurrava mais um pouco o corpo que acabava servindo de alicerce para os pés, já hesitantes, pois o fim da prancha estava próximo. Eu não queria ir, mas a cegueira pirata me empurrava cada vez mais rumo àquele inesperado catastrófico, e a cada passo a prancha diminuía mais – e parecia não ter fim aquele tormento que era atormentar-se com o que ainda não aconteceu.

Era o barulho do mar? Era o ranger da prancha? Era o escorrer do sangue, o arrepiar dos pêlos, a pele tocando essa mistura vertiginosa? Era o caolho atrás de mim, que não mostrava-se para confundir-me fazendo com que não pudesse ver o passado nem escolher o presente? A faca que podia me tirar a vida de uma forma bem menos indolor do que se ela fosse tirada aos poucos, anulando-me naquele mar de incertezas que eu nem via diante de mim? Era tudo que eu não era, pois naquele momento quem cegava era eu, independente de tapa-olho – eu cegava, pois não tinha escolha senão a escuridão que me fora ofertada ali, onde findava a prancha diminuta sob meus pés.

A faca empurrava mais, lembrava o tic-tac do relógio que eu não tinha, marcando o tempo que agora fazia-me falta. Eu queria a perna de pau, o olho de vidro, o papagaio no ombro. Mas meu pirata era falso, obsessivo. Só servia para guiar os prisioneiros na prancha delgada. O meu pirata não falava espanhol, nem saqueava navios, e nem sei se tinha pirata ou era só uma faca me empurrando para zombar de minha cara, eu só sentia o equilíbrio na prancha, o balanço da maré, que iria me levar para ser como todos aqueles seres marítimos, que só sobem à superfície para respirar.

Eu respiro o ar que falta aos pulmões. Logo, sou eles também. A única saudade que posso ter é da faca cortando as costas, do sentimento do sangue escorrendo no corpo, embrenhando-se entre pêlos. Aquela dor que enausea a gente, mostrando que ainda tem vida dentro daquele corpo sanguinolento. Mas o sangue não corre mais para fora do corpo. Nem por dentro.

15.10.07

ASAS

Os olhos de avental, ao meu redor, brincavam desconcertados com minhas asinhas. Pequenas. De penas amarelas como o sorriso de minha mãe ao ver-me. Mas mãe é mãe, e aos poucos o defeito ficou bonito. E apresentava-me já dizendo estar ansiosa para que eu começasse a voar, como quem se diz ansioso para que o filho ande.

E cresci ouvindo que voaria. Sonhava brincar com os pássaros. Disputar corridas aéreas. Furar as nuvens com meu corpinho alado. A janela do apartamento me mostrava uma infinidade de possibilidades que um dia eu concretizaria, numa decolagem qualquer.

Na escolinha, o que para os outros era uma fraqueza, para mim representava apenas a minha superioridade. Quantas daquelas crianças alçariam vôo algum dia? A única pena que elas conheciam era a pena delas mesmas, daqueles seus pezinhos tão fincados no chão. Limitados. Invejosos. No fundo sabiam que minha condição de menina-pássaro só me dava oportunidades que eles nunca teriam.

Mas eu crescia e as asinhas não. Exibiam por anos o mesmo tamanho que os médicos e enfermeiras constataram ser quase o mesmo de suas mãos. E como asas nanicas sustentariam um corpo humano? Um corpo humano que, embora não o fosse ainda, seria adulto um dia.

Foi no início da puberdade que as penas começaram a tomar conta do resto do meu corpo. Amarelinhas todas. Brotando devagar e silenciosamente. Uma aqui, outra ali, até que meu corpo estivesse tomado por elas, quando eu já contava com quase 15 anos de vida.

Sempre tive a certeza de que algum dia aquilo que era um apêndice, me levaria pelos ares, rindo das pessoas mornas cujas vidas se restringem a arrastar-se por aí, pisando o chão com seus pés medíocres. E o dia fazia hora. Enrolava-se no tempo que o tempo tem e me confundia para que eu achasse que ele estava sempre próximo, mas nunca ali.

Quando precisei procurar um emprego, minha aparência foi decisória. Não havia empregos, estágios, ou frilas para pessoas com o corpo coberto de penas. Ao menos não em lugares convencionais. Com uma pequena adaptação de meus empregadores, virei mascote da Sadia.

Humilhante talvez, mas não quando se tem a certeza de que nasceu para ser especial. E, como em uma escola para deficientes, a especialidade nunca me era útil. Eu nunca tirava proveito daquele monte de pena, e já sentia as transformações ósseas que meu corpo de pássaro passava. Aos poucos, os fortes ossos humanos transformavam-se em ossos pneumáticos.

Com 20 anos, vi que minha vida chegava ao fim. Meus dentes haviam caído e a boca fora substituída por um bico precário de ave. Meus pais já não falavam comigo, pois eram incapazes de entender os piados que eu emitia. Foi com a derradeira degradação que tomei a decisão mais importante de minha vida. Tal qual Dom Pedro, sabia que, para mim, só havia duas opções: independência ou morte.

Novamente era a janela do apartamento a me tentar, chamar-me para os ares com a sensualidade que só um pássaro imagina que as janelas possam ter. E assim, atirei-me ainda com a ilusão de poder voar, mesmo com minhas asinhas subdesenvolvidas a provar que nunca sustentariam uma pessoa de 20 anos.

Junto ao meu corpo estilhaçado no chão, estilhaçaram-se também todas as ilusões de uma vida falsa. Uma vida que viveu enganada com a possibilidade de vôos inimagináveis, que ficaram apenas na imaginação. Uma vida vivida pra ser voada, mas que nunca decolou.

8.10.07

MANUAL DE INSTRUÇÕES

Lindo, daquelas belezas antigas, pele e olhos claros, sorriso criança, cachinhos dourados no cabelo. Lindo do tipo que não me adiantava nada, estilo príncipe encantado que traz café na cama, liga para dizer boa noite e fala coisas bonitas oito vezes por minuto. Ele faz planos, tem carro, dinheiro e vida pela frente, nada do previsto no meu manual de instruções.

Choro, berro, grito, jogo o controle da TV na cara dele. Mas aquela perfeição falsa era totalmente inabalável, ele parecia não estar disposto a se enquadrar no meu estilo de vida sem ontem e amanhã. Já comprou a neosaldina quando me viu começar a beber, trouxe o casaco que esqueci de trazer e me levou até em casa para eu não me perder.

Ele proibia metodicamente todas as manifestações da inconseqüência à qual eu sempre fora tão apegada. Ele entendia todas as coisas que eu fazia, estudou sistematicamente os mecanismos do meu funcionamento, descobriu a lógica que nunca imaginei que pudesse existir por trás de mim.

Fui desvendada e humilhada de uma forma quase inocente, como uma criança descoberta em uma mentira. Precisei permanecer junto a ele, pois ele nunca havia reparado nos danos irreparáveis que causara em minha personalidade. Fiquei a seu lado para que ele nunca pudesse refletir sobre todas as descobertas que eram dele e só. O objeto de estudo: eu. Suportei saber que ele me conhecia tão bem, remediando-me com o fato de que eu jamais alcançaria tal grau de auto-conhecimento. Mas, de alguma forma, o fato de ser previsível incomodava-me. Planejei formas incontáveis de fugir desta previsibilidade que tanto me agredia, mas soube logo que o ato de planejar já me tornava comum, igual aos outros, sem surpresas.

Ele jamais esqueceria de sua descoberta mais incrível. Eu era o rato de laboratório que ele perseguia, através de beijos e carinhos, traçando metodicamente o manual de instruções no qual ele nunca esteve incluso, mas incluía-se assim, por traçá-lo e agora eu perdia completamente o controle de minha vida, que pertencia mais a ele do que a mim, eu jamais entenderia o que ele fizera com minha personalidade, de que forma eu havia sido anulada em poucos meses de convívio, reduzida a pequeno objeto de estudo científico, e essa relação de criador e criatura agora me perturbava mais, pois eu sequer sabia se eu já havia existido antes de ter sido realmente descoberta, como se fosse alguma lei da física ou algo assim. Eu tinha medo de um dia figurar toda minha previsibilidade em algum livro de ciências do segundo grau, distribuído gratuitamente nas escolas públicas da cidade, eu não queria mais ser isso que eu era ou que eu não era, pois negava-me a me descobrir no que eu havia sido descoberta.

Amei, amei mil anos sem amor algum, e com duração de tempo que não conto. Amei a prisão à qual eu estava submetida: ele, meu criador, descobridor, o cientista maluco que traçou todos meus ideais de vida antes mesmo que eu os tivesse vivido ou sequer idealizado. Eu era agora um mecanismo frágil, uma lei rara e óbvia, um computador cujas ações eram limitadas por um número pequeno de combinações possíveis de serem realizadas e funcionando segundo uma equação simples e pré-estabelecida à qual eu nunca teria acesso, eu não queria ter acesso à minha alma, à minha natureza sinistra e linear. Fui escrava de sua perfeição divina, a perfeição que ele calculou nas dimensões exatas para caber em minhas pequenas pretensões de vida e em meu manual resumido, traçado por ele.

Hoje, diploma, filhos e sorriso no rosto. Tento lembrar quem eu era, mas eu nunca soube. Só o que me inquieta é saber agora exatamente quem sou.

1.10.07

SER

Passaram 24, 48, 72 horas. O telefone não tocou. Espreguiçou o corpo abrindo os braços devagar, em ângulo reto com a cabeça, sentindo-se acordar suavemente, a vida do dia lhe invadindo o corpo e preparando suas funções vitais a continuarem sendo. Sabia com pesar que tudo ainda fazia sentido, embora quisesse estar triste - a tristeza, desdita, não vinha quando bem lhe queriam, era espontânea e agora mesmo que tão almejada, era incapaz de dar as caras, mostrar um sofrimento qualquer que fosse, para pintar bonito na tela e fazer ver aos outros que havia sido rejeitada. Incapaz. Só havia um sentimento leve tomando conta dela, como que um não saber, que ela tão bem sabia.

Foi então ao encontro da vida. Injetou café na boca ainda morna de manhã, e fez acordar-se à força. Comeu também um sanduíche, preparado às pressas, enquanto caminhava em direção à parada de ônibus, quase atrasada, mas ainda não. Sentiu o vento bater a cara como sempre bateu, mas agora lembrava que estava ali, inteira, confessadamente inteira. Fez sinal quando o farol se aproximou, mas não subiu no ônibus que parou. Desistiu, e pensou não trabalhar naquele dia nublado, ventoso. Quis ter desculpa, mas não tinha, então não ligou avisando que não iria. Também não havia motivos para voltar para casa, olhar TV, comer algo. Queria brincar de vida por alguns instantes para ver se, vivendo, era capaz também de ter disposição de não ser - como tanto queria.

Andou a esmo, até encontrar nada demais, como era previsível. Mas foi em lugar algum que parou e decidiu ficar, olhando o céu, com suas nuvens a dançar uma dança lenta e discreta, como bem cabia às nuvens dançarinas. E as nuvens faziam um espetáculo só para ela, ou só ela, na platéia inteira, havia gostado do espetáculo oferecido, mas é fato que tudo agora fazia sentido. E que entendia que aquela alegria serena, no lugar da tristeza que quis, não era farsa de espírito ou força de qualquer coisa. Era um balé sincrônico e lento, como a dança das nuvens, que lhe dizia apenas o que fazer, mas o porquê sempre dispensou, e só servia para continuar sendo. Como antes não quis.