26.11.07

OS FATOS

Desde aquele dia, nunca mais tocamos no assunto. Criamos uma cumplicidade que nos envolvia e nos fazia quietos, criando uma neblina de confiança desconfiada entre nós. Olhávamos e sentíamos que tudo devia ficar apenas na memória, sem nenhum comentário que fizesse alusão.

Mas foi tanto que o fato cresceu no meio do silêncio de ambos e passou a andar de mãos dadas com nossa amizade. E, por mais que o tempo passasse, vez por outra eu encontrava em sua retina a memória daquele segredo a me fitar duvidosa, sobre eu ser quem sempre fui ou ser outra pessoa simplesmente pelo que fui.

Ele levava consigo – nos braços e no olhar – a serenidade revolta de quem sabe demais. Eu guardava um quê de melancolia inquieta, com que se tivesse medo de algum dia ele tocar no assunto. E o fato de o dia não chegar, mais angustiava do trazia calma, pois eu sequer sabia do quanto ele sabia.

E com o tempo eu parecia deixando os fatos cada vez em um canto mais afastado da memória e só o que lembrava é que ele sabia mais do que eu. Ele, por sua vez, foi lembrando cada vez mais e houve um tempo em que vi que a lembrança não lhe saía da face, como se me acusasse de algo que eu já não conseguia entender o que era.

Mas um dia passamos horas juntos. Eu, ele e os fatos. Soubemos tanto e falamos mais do que havíamos falado durante todo o resto do tempo em que soubemos de tudo. Ressabiados, descobrimos aos poucos que o que sabíamos não era nada - esse seria nosso novo segredo.

19.11.07

PUTAS

Segundo o Renan, a Lindalva era só mais uma puta por quem eu tinha me apaixonado, o que explicava ele estar me levando para um puteiro. Mas, segundo o Renan, todas as mulheres eram putas, principalmente aquelas por quem eu me apaixonava. Por isso era mais prático gastar cinqüenta reais num puteiro, do que levar mulher para jantar, pagar motel, ligar no dia seguinte - as putas não queriam que ele ligasse.

"elas fazem de tudo, tem que ver!"
(BRAGA, Renan)
O lugar tinha o cheiro que as doenças venéreas devem ter e era recheado de loiras cujos cabelos brilhavam na luz negra - única iluminação da casa. Sentei numa cadeira de estofado de couro vermelho - rasgado - e pedi um drinque, para entrar no clima. Uma das loiras pôs o salto do sapato - branco, plataforma, 20 centímetros - levemente sobre meu sexo e começou a dançar uma espécie de dança do ventre improvisada e decadente - pseudo-sensual.

O estômago embrulhou. Elas prostituíam as almas e os corpos com um desapego invejável. Pensei na Lindalva e no seu excesso de apego, nas doze ligações diárias. A Lindalva era só mais uma puta, devia ouvir o Renan. Busquei o telefone no bolso dianteiro da calça, puxei o número da memória – tinha apagado do celular.

“Lindalva, vem me buscar que eu estou odiando.”
(MESMO, eu)
Eu não queria que ela entendesse e nem pretendia explicar o porquê de eu estar num puteiro, quando tinha mentido que estava visitando minha mãe no hospital. Mas eu não queria estar lá, e me parecia uma boa justificativa – eu estava errado.

Saldo da noite foi zero Lindalvas, uma puta e doze uísques paraguaios. Só sobrou o gosto azedo de deixar princípios para trás. Mas afinal, eram todas putas mesmo, não faria diferença.

12.11.07

ADULTOS

Embriagou-se de felicidade ao ouvir as palavras inseguras que saíam lentamente, deslizando pela laringe, brincando às voltas da garganta, escorregando pela língua e, finalmente, jorrando da boca dele. Já havia perdido a conta do número de paixões que lhe haviam consumido, tirando o sono, secando a boca e acelerando o coração. O professor de história, o amigo do irmão, o primo mais velho, o menino do segundo grau. Tantos que não lembrava mais. Todas paixões platônicas aquelas, tão sem graça agora diante do menino imberbe e tímido dizendo que gostava dela.

Separou num canto do seu eu mais escondido um espaço para o que tinha para lhe dizer: guardava o papel de bala que ele tinha lhe dado tempos atrás, tinha fotos dele espalhadas pelo quarto, chorava ao ver novela, queria dizer que amava. Segurou-se. Era uma menina, a mãe tinha lhe ensinado a não ser tão fácil com esses meninos. Sorriu e deu um beijo estalado na bochecha dele, que fez barulho e o barulho transformou-se num tom róseo que migrou para o rosto dos dois.

Após o beijo, saiu alegre-envergonhada, saltitando como se tivesse ganhado um brinquedo que muito esperava. Mas não queria mais brinquedo. Agora tinha um namorado, não era mais dessas crianças aí, que só querem saber de brincar de bonecas ou jogar videogame. Era uma pré-adolescente, com 6 anos já. A mãe teria que entender.

A mãe entendeu. Comprou vestido novo para ela se produzir não muito curto, não quero filha minha mostrando a bunda por aí, deixou usar maquiagem bem pouquinho, senão vai parecer um travesti. A filha estava virando uma mocinha, afinal. Mostrou alguns livros de anatomia humana, que ela não entendeu muito bem para que serviam, mas olhou atenta. Explicou coisas que a filha não deveria fazer – e ela chocou-se em saber que havia pessoas que faziam aquelas coisas horríveis.

No dia seguinte, na escola, ela - não mais embriagada com a felicidade que lhe cegara e fizera beijar o menino, a mesma que lhe carregara saltitante até em casa, que fizera comprar vestido e maquiagem – sorriu quieta e explicou para ele que os adultos eram seres muito complicados. E convidou para brincar de casinha.

5.11.07

ANUVIAR-SE

Foi subindo as escadas feitas de nuvens e outros sonhos que se desfaziam no ar. Pulou um, dois degraus. Não sabia o que encontraria lá em cima, mas continuava subindo, com a certeza de que nada de ruim subiria àquela altura e nada de ruim lhe alcançaria, mesmo que estivesse no chão.

No caminho, brindou vitórias e conquistas nunca realizadas, correu atrás da luz que brilhava no fim do túnel sem fim. Chorou lágrimas verdadeiras de sentimento barato. Desfez-se mil vezes até nunca chegar, mas reconstruiu-se logo, para continuar sua jornada pelos ladrilhos anuviados.

Riu e o riso fez-se estrada, e distribuiu alegria boba pelo caminho, que coloriu-se feito quarto de criança. Esqueceu dias e meses e anos, e nada podia enquadrá-la no tempo – não no tempo do relógio, tão simétrico, só no tempo das palavras, um tempo de idiossincrasias, do tipo que se conta em batimentos cardíacos ou respirações ofegantes.

Traiu a si mesma e aos seus princípios que ali nada valiam, ficaram presos no chão que havia deixado há tempos. Despiu-se de toda a moral, de toda a vergonha, deixou lá seus medos e angústias, vomitou inseguranças infantis que ainda a prendiam. E foi ficando leve como a escada nublada que lhe servia de base.

Esqueceu-se da carniça que ainda levava rente à alma. Aquele corpo podre cheio de vestígios de um passado que já havia passado. Nada mais de dor a acometia, só tinha o dançar leve de seus passos escalando a vida. E via tudo e ouvia bem e sentia o ar. Até que fundiu-se com as nuvens. E voou.