28.1.08

VENTO

Vento. Era noite já quando começou a ventar. Lua cheia. Tempos que não via noite clara como aquela. Subiu no terraço do prédio – 15º andar. Em volta, outros tantos prédios de mesma altura enfileiravam-se no centro barulhento da cidade. Podia sentir o cheio forte da poluição berrando em seus ouvidos. Luzes acendiam e apagavam sem método. Televisores mostravam suas cores nas janelas abertas. O vento gemia baixinho o medo de toda aquela civilização. De repente sabia que naquela hora tinha alguém morrendo perto, mendigo passando fome, criança na sinaleira. De repente sabia tanto aquele vento que ele nem quis imaginar. Gemia solidário àquela pobreza toda que tínhamos dentro de nós e carregava consigo o azedo de tudo que jogamos fora e devíamos continuar carregando. Infeliz do vento, que sabia demais e tinha tempo de assobiar, por entre os prédios mal-cheirosos, levando consigo tudo que tinha – nada. Nostálgico. Antes, corria quieto entre árvores, brincava de fazer ondas em rios. Agora, aventura era ser cortado por aviões, que lhe roubavam aos poucos as nuvens, ou ficar preso entre os prédios do centro. Poucos, como ele, apreciavam o som do vento, as nuvens em formação diversa, movendo-se lentamente ao sabor da vida, as poucas estrelas que mostravam suas caras no céu, naquela noite. Ouviu o zunido baixo com cuidado, como quem ouve o choro baixinho de um fim, lembrava a pipa que soltava na infância, num barranco próximo a onde morava, na periferia. E agora, como o vento, ficava preso entre os arranha-céus da cidade, recheados de rotina morta em suas horas delimitadas pelo relógio. Do vento, coitado, roubaram um pedaço. Tiraram-lhe o habitat, um brinquedinho qualquer, impuseram-lhe muros que não conhecia. Ainda restava admiração àquele movimento do ar, à brisa forte. Pois o vento, ele sabia – invejava até – ainda era livre.

15.1.08

MORTES

Carência é o sentimento que mais me matou até hoje. Porque, de todas as vezes que morri, de todas as mortes nobres ou não, a carência foi quem mais vezes esteve presente. E a todos os meus enterros ela fez questão de ir, mesmo quando não convidada. Foi graças a ela que conheci assassinos impiedosos, e que algumas vezes matei também.

E agora estamos aqui, abraçadas. Palavras presas na garganta, um berro que tem medo de sair. Um nunca mais que temo ser mentira. Ah, minha sempre companheira, presente em corpos tão diferentes entre si.

Ao longe, minha cabeça lembrava uma música que nem lembro e que dizia que traições são bem mais sutis, mas esquecia-se de citar um elemento de comparação. Para mim, as traições são sutilezas da alma, e da amiga carência. Importa se concretas?

A quem interessa as desculpas, quando já estou morta? De que me valem lágrimas no velório, se em vida não foi capaz de me dar sorrisos sinceros de felicidade? Que alegria falsa, amiga carência, me proporciona de mês em mês, sob um novo rosto falso, futuro assassino de mim?

E lembro disso agora pela proximidade com que faleci pela última vez. Não chegou a ser inesperado para mim, embora eu tenha demorado um pouco a assimilar a idéia fúnebre. E penso que talvez os outros tenham sido pegos de surpresa. A graça maior foi eu perceber, constrangida, que acostumei-me.

Não passei mais dias e noites deitada no caixão, braços cruzados sobre o peito e olhos fechados para o mundo. Ao contrário. Sorri um pouco, talvez consternada, talvez por falta de vontade de chorar, e anseio de mostrar algum sentimento qualquer que fosse, mesmo que nem nome tivesse.

Este funeral foi, sem dúvida, muito estranho. Nem a carência veio dar as caras no meu breve sofrimento. Sequer tive tempo de parar de respirar, me neguei a fechar os olhos, procurando imediatamente algo que me matasse com o sofrimento que eu realmente merecia, como das outras vezes que tinha morrido.

Mas não, o mundo tornou-me descrente. As vidas que tive, todas breves, cansaram-me o suficiente para que eu não saiba mais a direção que devo tomar quando as mesmas acabam. Se todas acabam mesmo, talvez a graça esteja em vivê-las. Em aproveitar tudo o que elas têm a oferecer, sem culpa nenhuma pela leviandade dos sentimentos. Quem sabe, o melhor seja vagar pelo mundo sorrindo, fingir que nada aconteceu. E, de vez em quando, soltar uma lágrima mentirosa, para demonstrar uma humanidade artificial.

E agora, pra que lado vou? Saltando livre pelo pasto, não sei mais qual grama provar.