25.2.08

MINHA PRÓDIGA CARREIRA NO MUNDO DAS LETRAS

Uma maldita folha em branco zombando de mim – quem dera fosse folha ainda, como as que usava para escrever antigamente, mas não passava de um documento eletrônico, um arquivo de word , um pontodoc – a idéia não ousava aparecer em minha frente, temerosa de que eu a apanhasse e jogasse na tela, como quem joga um inseto no vaso, e a deixasse presa ali – mal sabia ela que essa era a melhor prisão que uma idéia poderia ter: o papel – ataca-me o estômago, talvez fosse a coca-cola, talvez o queijo mofado, única refeição do dia, continua a tela ali a me fitar com olhar descrente esperando que meu cérebro transmitisse uma idéia surgida de algum lugar secreto – um lugar que ainda cultivasse alguma criatividade no jardim e eloqüência na escrita – e meus dedos começassem a jogar as letras alternadamente, mas com alguma lógica que só eu saberia qual era, formando frases ingênuas que se ligariam de uma forma inesperada, formando a obra máxima de minha vida que me renderia seguidores Brasil afora, uma cadeira na ABL e uma aposentadoria vivida a base de direitos autorais – mas não: meu cérebro, rebelde massa cinzenta, já nervoso por falta de atividade, teimou em não produzir idéia alguma que servisse, acusou falta de inspiração, falta de comida, falta de paixão; as mãos mais ágeis um pouco, entraram em greve, pois não poderiam trabalhar sem o tão estimado chefe, que sempre lhes guiou dentre os desafios do teclado, mostravam-se agora apenas instrumentos inúteis de movimentação, gesticulando desordenadamente, como que xingassem a mim ou ao computador ou mesmo ao cérebro, que as deixava sós e confusas, inúteis; não formou-se frase sequer e essa ligou-se a nenhuma outra, pois era incapaz de pensa-las, eis que então minha obra máxima não foi produzida e se alguém um dia me seguiu depois do momento em que aqui relato foi apenas um cachorro vadio a procura de que alguém lhe desse um prato de comida fria e a única cadeira em que sento é a de madeira, junto à mesa da sala, solitária – todas as outras já sem pernas – e para mim jamais houve aposentadoria ou centavo ganho com direitos autorais; a folha zombeteira não me deixou entregar a primeira redação na escola, arruinando minha pródiga carreira no mundo das letras – talvez eu pudesse ser técnico em enfermagem.

18.2.08

NA CORDA BAMBA

Caminhei na corda bamba. No fim, havia um pote de ouro – ou seria no fim do arco-íris? Foram passos apressados, controlando a inconstância até que ela fingiu-se constante para agradar a dor do medo que sentia enquanto andava sem rumo, rumo ao fim. A platéia, quilômetros verticais abaixo, aplaudia, torcendo intimamente para que eu caísse. Tragédia agrada a multidão. Insisti em permanecer equilibrada, que nunca tive equilíbrio nenhum na vida, mas a corda dizia: ou ele ou eu. Optei por equilibrar-me.

E foram meses ou anos que não sei, pois era incapaz de olhar no relógio, temendo a queda. A platéia uniforme, era sonora, não via seus rostos – aconselharam não olhar para baixo e segui o conselho. Minha vida tornou-se reta, como nunca tinha sido, sempre em caminhos tortos – tão melhores para se perder. Agora, nunca me perderia, perseguia o fim que nunca chegava e essa era a única expectativa que agora tomava conta do meu dia. Conseguir. O pote de ouro esqueci – deveria ser no fim do arco-íris mesmo e não havia arco-íris ou horizonte algum próximo à mim, só a corda e o som da platéia, temendo e ansiando minha queda.

Nem a queda nem o fim mostravam-se próximos. Os passos tornaram-se mecânicos, a corda balançava ao vento e eu balançava junto, em sintonia perfeita. Viramos um só, indissociáveis. Todo o contexto regrado e monótono era minha única visão de mundo agora: a platéia, a corda, o equilíbrio.

Mas aconteceu o dia em que cansei e resolvi brincar de desequilíbrar. E olhei para baixo e vi as horas e o tempo havia passado e a vida estava passando. Desequilibrei em frente a platéia que eu finalmente pude ver e no caminho rumo ao chão deslizei num arco-íris inusitado, que nunca imaginei que houvesse sob meus pés colados à corda. E fundi-me às cores que se encheram de mim, preenchendo a vida preto e branco que eu tivera durante todo o tempo na corda. Escorreguei nas cores que agora eram minhas, até fundir-me ao tempo e chegar ilesa ao chão, perante a platéia incrédula. Incrédula também eu: o pote de ouro não existia.

4.2.08

ESCADAS

Me fez perceber que era uma cidade feita de escadas - e subíamos, descíamos e sentavamos em algum degrau aleatório, que era morada de nossa alegria durante curtos minutos, até que exercíamos novamente nossa habilidade em ir e vir, pulando degraus e esquecendo do tempo nos pequenos azulejos que o Selaron meticulosamente encaixou em um mosaico preparando para aquela madrugada.

Em cada degrau haviam novas descobertas e a cada descoberta esquecíamos um pouco do resto do mundo, que não cabia na escadaria colorida. Os degraus fizeram-nos prometer que continuaríamos subindo sempre - o céu nunca foi limite.

Mas eu sabia que o tempo era curto e os ponteiros do relógio nos olhavam como guardiãoes aflitos, prontos para me retirar das escadarias que só ali eu encontrava e levar de volta àqueles dias de dezesseis horas - oito jogadas fora. Ele fingia não saber de tudo isso, mas tinha a presença incômoda daquele tic-tac regulando nossa incessante busca ao último degrau, independente de qual fosse o último.

Chegamos, enfim, às nuves e continuaríamos subindo incontáveis quilômetros verticais, não fosse hora de despertarmos da jornada e seguirmos nossos rumos, em sentidos opostos, que opostos sempre fomos, antes da escalada.

Foi o relógio que nos trouxe a sensação azeda de que tínhamos que descer novamente, e descemos todos os degraus, até que continuei descendo - agora sozinha e ainda entre as nuves - rumo ao sul.

Mesmo distantes, continuaríamos subindo sempre, pois sabiamos, como um segredo que se fala calado, que o céu nunca foi o limite.