27.7.09

MULTIDÃO MATUTINA

7 horas da manhã. Uns 70 rostos de olheiras fundas saem diariamente rumo a sua rotina de passar pela roleta e procurar um espaço no estreito corredor do ônibus, já ocupado por vários outros corpos cansados. Morar perto do fim da linha tem suas vantagens. Em meio à multidão que se amontoa, sou uma dentre os 48 privilegiados que viajam sentados.

Duas meninas de vozes estridentes conversam sobre a prova do dia anterior, no banco de trás. Calculo que não passam de quinze anos. Outras vozes que não distingo invadem minha cabeça. Saiu ontem? ...tapa na pantera! Amo tanto... e tu viu que a Ana Paula Arósio... Sons vindos de anônimos barulhentos demais para aquele horário da manhã.

Pastas, mochilas e livros denunciam futuros biólogos, arquitetos e engenheiros. Existe, claro, a possibilidade de que os objetos estejam mentindo. Ignoro-a. Alguns crachás passam pelos meus olhos indicando trabalhadores de diversas lojas do Centro da cidade. Em meio a isso, homens de terno se fazem notar, quase sem querer. E os lisérrimos cabelos das meninas de fichário cor de rosa lançam-se despreocupados sobre os outros humanos que ali estão, com seu balançar de comercial de xampu.

Sinto medo que uma das gordas que entram agora no ônibus fique presa na roleta impedindo a passagem. Por sorte, as roletas foram planejadas pensando nas gordas. Chegam ao corredor e o entopem – vingam-se assim, das gorduras que entopem suas veias. Humanos precocemente putrefatos seguram-se nos ferros presos ao teto. Suas regatas deixam à mostra uma infinidade de pêlos e suor nas axilas. Exalam cheiro de podre, contrastando com o forte perfume das moças de cabelo cor-de-gema – tonalidade adquirida por um preço módico, em uma das farmácias do bairro.

Cabeças de todas as cores misturam-se no pequeno corredor. Corpos de tamanhos diversos disputam lugares. Pessoas de diferentes idades e ocupações agridem meus olhos com sua feiúra matinal. Tropeçam em mim, e fazem com que suas pastas e bolsas me batam sem querer. Uma multidão matutina que fede e faz barulho. Estupram meus sentidos, poupando apenas o paladar. Sorte?

Um ou outro dos sentados dorme com a cabeça recostada à janela. Alguns babam. Uma criança chora em um banco distante de mim. Baba. Sinto, também, vontade de chorar. Pedir pra voltar pra cama. Mas é tarde, a hora de descer se aproxima. Deixo pra trás as vidas sem nome que cruzaram comigo naquela manhã, e, juntos, descemos, na última parada do ônibus. Rumo às nossas vidas que se encontraram em infelizes segundos, para logo após seguir.

Esqueço-os.

20.7.09

PORTFÓLIO

Era estranho perceber agora, relógio marcando horas que meus olhos cansados são incapazes de ler, que, numa fração qualquer de medida de tempo que não sei, todas minhas paixões – antes incrustadas à pele, não existam mais.

Invisíveis. Assim as vejo, como se fossem algo que nunca existiu, e talvez não mesmo. Todas passado, passam agora em minha mente desfilando em portfólio de imagens indolores. Eram muitas, sei, tumultuando um corpo inundado de platonismo. Hoje.

Não havia mágoa alguma para desfazê-las no ar. Talvez elas apenas não latejassem mais em mim, ocupadas que estavam em habitar outros corpos, não mais o meu.

Sim, todas as paixões de riso plácido e choro convulso, até mesmo aquelas com cor de esperança, guardadas mais na mente que no olho, as carregadas anos em silêncio, tão contidas em sua dor calma, que dizia insistentemente que tudo dará certo um dia.

Agora diluída a vontade do dar certo. Apenas lembranças cômodas de todas coisas que acabaram por descuido.

O que hesito em aceitar é que aquela tristeza raivosa, aquela ânsia de vida, seja agora tão serena, metamorfoseada em vazio.

13.7.09

AQUELA TRISTEZA

Já o tinha visto desnudo vezes que não caberiam no papel, mas só agora aquele corpo me deixa à mostra toda sua nudez. Só agora vejo o que havia por trás da pele - por trás dos pêlos. Aquele jeito de voltar atrás que surpreende mais a ele que a mim. Toda uma falta de orgulho que ele nunca soube ou nunca admitiu sentir.

Mas eu digo um não triste, do tipo que tentou ser sim por um instante. E eu não sabia de onde viera tanta imposição para dizer uma palavra que minha boca não queria acreditar, contrariando todas as falsas filosofias de vida tecidas a esmo por mim entre copos de cerveja.

Foi assim, de uma forma quase triste, que nos olhamos a última vez. Daquela tristeza que doía em silêncio - não o fim iminente, mas por não nos reconhecermos mais dentro de nós.