Aquele foi diferente.
Entrou desrespeitoso através da janela e posicionou-se a seu lado. A asa manchada de sangue. Tentou enxotá-lo, para que voasse de volta à rua, à rua que era seu lugar. O pássaro, penas amarelas com a mancha vermelha denunciando ferida, negou-se. Teimou ficar ali com ar imponente de quem exige ajuda.
Ela, que desfrutava ao amanhecer de seu canto, a embelezar as sirenes, não poderia hoje, por obséquio, levá-lo a um veterinário, fazer um curativo naquela asa? Não. Tinha pressa, e apressada foi ao trabalho, ao dentista, à academia, para então voltar a noite e vê-lo novamente ali, sustentando o silêncio, como em greve de fome.
Tratou de pegar o pássaro e colocá-lo para fora de casa, com as próprias mãos - lavadas em seguida e desinfetadas com álcool gel. O bichano já estava lhe sujando a casa de sangue e teria que chamar a faxineira tão logo fosse possível. Para que não entrasse mais, fechou a janela. E estava cansada, e casada dormiu, porque na manhã seguinte tinha pressa, que ir trabalhar, passar na estética, pagar aluguel.
Quando chegou em casa, o pássaro permanecia em frente a janela, as penas cada vez mais perdendo o tom amarelo para o vermelho. A falta de canto não lhe era mais protesto, e sim, talvez, única escolha. Se apiedou do animal e deixou-lhe entrar novamente. Não era comum tamanha dedicação.
Assim que cruzou a linha que divide a rua da casa, deu um último silvo, que confundiu-se com outra ambulância, que carregava vida ou morte humana, e desfaleceu.