18.1.10

DEUS EX-MACHINA

Tu é apenas meu personagem e a ti não são permitidas vontades. Não tens sede ou fome e sequer te libero para sentir qualquer outra coisa. É preciso que entendas que, em tua condição de personagem, tens o dever de carregar coerência interna nos atos. As aulas de português ensinaram; o livro do Paulo Guedes ditou.

Portanto, te peço que não mordas mais em carnificina teu lábio inferior diante de minhas descrenças. Sugiro a ti, como a um personagem raso, que altere o discurso neste e naquele diálogo que se encontram na 5ª linha, 8ª dose.

Entende, é tudo teoria literária: para ue tal declaração fosse verdade, era preciso que houvesse um elemento anterior a confirmar. Uma dessas coisas que soam em silêncio na cabeça do leitor e o fazem acreditar.

(senão, essa paixão é deus ex-machina)

11.1.10

O que teu sorriso faz nesse rosto que não é teu? Me diz. Devias ter patenteado esse sorriso jovem que tu tens, de 28 dentes alvamente lisos - os sisos extraídos já, te dizendo adulto, o que és só em idade. Mas esse sorriso me invade o ônibus e sorrio-resposta como te faço. Para disfarçar o medo, peço a parada ao cobrador; pergunto as horas ao menino ao lado; me ofereço para segurar as frutas da senhora que me empurra com a coxa e me massacra com a sacola do Zaffari ainda cheirando a plástico novo. não, obrigada, ela diz com voz de receio que eu roube suas maçãs. seus frutos proibidos meticulosamente etiquetadis um a um para que em nada lembrem o pecado original. De repente acho que amo aquela mulher que sente repulsa por eu estar escrevendo em um ônibus; e a amo pelo único motivo que ela não carrega teu sorriso - não há sorriso algum naquele rosto pobre, surrado de vida, que deve manter na boca bem menos que teus 14 pares de dentes; a amo por saber que aqueles cabelos castanhos nunca serão como os teus: negros
negros
negros; que a pele castanha não será a tua, ainda alva de inverno; que o olho verde não será o teu, infinito profundo, buraco negro
(negro,
negro)
E a amo mais que tudo por não carregar teu sexo, teu cromossomo Y que sempre persegui; amo e sei que amo pelo simples fato de que quero carregar sua sacola repleta de maças e tomates e um provável mamão, para a digestão.
Amo como a um menino órfão, por quem só sinto amor pelo fato de ignorar sua existência.
Amo porque falta teu sorriso, e sem teu sorriso não haverá amor.

4.1.10

BICHO DE ESTIMAÇÃO

Se houve sangue? jorrou nas paredes mofadas do apartamento esse bucólico líquido da vida, primeiro preto, depois verde e só então vestiu-se de sua tradicional cor de carne. Como estivéssemos nus, achamos engraçada aquela nova pintura das paredes - mesmo que o cheiro ocre da morte enjoasse um pouco o ambiente. Que fazemos agora, eu disse, mas tu já te ocupava em uma tela, misturando os tons daquele óbito. Coloquei uma música para te ajudar a pintar. Chico Buarque...? teu tom é de crítica, ele adorava Chico, eu respondo, enquanto começo a puxar o corpo em direção à janela, pois até os cadáveres precisam de um pouco de ar e o cheio de morte inunda o ambiente. trabalha amanhã, tu perguntItálicoa. trabalho, mas vou mentir que estou doente, preciso levar o defunto para passear. Mas não te digo isso, pois sei que vais reclamar que estou mimando demais o cadáver. Respondo apenas sim. Tu diz acho que vai chover e eu penso que, se chover, eu trabalho, pois não convém passear com mortos na chuva. Eu arrumo um colchão na sala para ele - é preciso descansar - mas antes lavo a louça para que o sangue não fique encruado. Ele não gostaria de ver sua louça italiana suja pelo próprio sangue.