31.5.10

NÓS

Me inquieta andarmos agora lado a lado, em silêncio. Nossas bocas, tão acostumadas à troca de fluidos, hoje sequer ousam se abrir. Não há palavras entre nós. Não há mais nós.

Nossos passos de então são serenos, como se os pés simplesmente soubessem apenas andar. E andamos, na companhia daquela noite, pisando o silêncio devagar, para não corrompê-lo.

24.5.10

CAFEÍNA

Eu abro a gaveta e minha vida não está ali. Então sigo pela casa perseguindo a dúvida, sem sucesso. Eu lembro um pouco do passado, enquanto folheio uma revista de 1999 e não me encontro nas manchetes ou reconheço aquele país. Eu apago a luz e abro a janela, busco no dicionário o sentido de qualquer palavra que exista
.........................................................................................tomo um café
.................................................................................................................tomo um café
.........................................................................................................................................desacelero um pouco e penso em telefonar para aquela garotinha que eu era tão pouco tempo atrás mas ela não está - eu não tinha mesmo o que lhe dizer concordo com todos os erros cometidos que me transformaram nesta coisa que não sei acendo a luz fecho a janela anoitece já além da cerca e eu sequer fiz algo que não fosse pensar
............................................................................................tomo um café
.........................................................................................................tomo um café:
..................................................................................................................................a vida não vale o que pesa.

17.5.10

NARIZ E OLHOS VERMELHOS

é muito pior, eu disse, porque gripe se cura. esse nariz e olhos vermelhos com que te presenteio hoje, em nossa jornada laboral, são ressaca mesmo. e isso eu não curo nunca porque nasci assim, com o pé na boemia e a mão na cerveja. claro que não disse isso na entrevista para a vaga, tu não contrataria alguém movido a café e álcool. mas eu atraso pouco e venho sempre porque preciso desse pouco que ganho que é o que sustenta esse nariz e olhos vermelhos que tu vês nesta quinta de manhã - que sem estas intermináveis horas de suor, não haveria momento feliz.

10.5.10

DESPUDORADA

Minha inspiração, se é que a tenho, é pontual
Aparece na hora da insônia e persiste apenas até indícios de claridade surgirem.

E então já é hora do café da manhã e de outro dia inteiro de ponteiros preguiçosos

Mas à noite,
após as poucas cervejas,
na esquina do sono tranquilo,
ataca-me novamente, despudorada, a inspiração

Cogito afastá-la
(geralmente, de nada me serve)
Mas pode ser que num relâmpago insone
ela venha em seus trajes pequenos
a me trazer uma alma inteira descrita em letras

Nesse dia eu lhe direi que hoje não
E dormirei minhas oito horas mortais
Afastando-a, como quem afastasse uma mosca

Nunca mais a prisão das palavras

3.5.10

SE TIVÉSSEMOS UMA POLAROID

Me apunhala a tristeza: Adonis não está nas fotografias. e faz tanto tempo. Sua foto não está na geladeira não está na gavetanão está na agenda de 2001. Eu procuro, mas não está no armário, nem no banheiro ou sob o colchão. (a foto de Adonis não está em cima da TV, não foi gravada em disquete, nem em CD - acho até que na época poucos tinham pen drives). no álbum de fotos não está, sequer caída no forro da bolsa preta de fuxicos que eram moda naquele verão. Adonis perdeu seu rosto num dia de chuva e eu vasculho pela casa e ele não está.

Quem sabe esquecido naquele filme de 36 poses - asa 100 - que nunca revelei.