28.6.10

AMEX

Quando a adolescência chegou ao fim, minha irmã se tornou uma pessoa centrada. Tão centrada que dava-se ao luxo de superficialidades mundanas, como o ciúme. Começava por investigar o namorado e só parava após uma minuciosa revista nos hábitos de toda a família. Ao pai dedicava maior atenção, realizando incursões pela carteira, de onde, invariavelmente sacava uma nota ao acaso, e pelo celular.

O pai que, apesar dos defeitos ainda sabia organizar os próprios talões de cheque em prol da conta bancária, usando os canhotos para registrar informações completas sobre seus gastos, fossem valor, nome do estabelecimento, telefone, ou mesmo as três informações reunidas.

Um dia, em suas escavações, minha irmã descobriu determinada quantia gasta em um local descrito como Amex. Não precisou de imaginação extraordinária para supor que era um motel e secretamente anotou o telefone, ainda sem saber ao certo o que fazer com a informação e com o número.

Contava para mãe, desabafava com uma amiga, guardava segredo? Xingava o pai, aproveitaria a oportunidade para fazer chantagem ou apenas esquecia tudo e maldizia seu hábito de escavar a vida alheia. Dormiu com a dúvida e talvez passasse o resto da vida com esta, não fosse a sensata decisão de telefonar para o local e averiguar a informação. Do outro lado da linha, a voz da atendente veio lhe fazer rir American Express. Bom Dia. Em que posso ajudar? Desligou agradecendo, ela já havia ajudado bastante.

21.6.10

ANIVERSÁRIOS

Lembro que há alguns anos, quando contava ainda com menos tamanho e mais vontade que hoje, meus aniversários eram feriados nacionais. Meu pulo da cama era guiado pelo faro de presentes e motivado por ligações insistentes no telefone de casa - era uma época jurássica em que as pessoas ainda ligavam para as nossas casas!...

Havia então docinhos pela casa e os presentes eram embrulhados, e não depositados na conta. Os parentes distantes lembravam e o parabéns-a-você era um ritual inevitável.

Não fazem décadas, pois contabilizo apenas duas delas completas. Mas hoje, em meus aniversários, me surpreendo a cada ligação. Quem mais esquece a data agora sou eu. Obrigada, obrigada. Olho o calendário. Era hoje mesmo.

Imaginem então quando vierem os anos, as rugas, os cabelos brancos que terei - se os tiver. Quando me disserem aniversário, recorrerei eu, em dúvida, ao dicionário, para compreender este misterioso significado dos anos.

14.6.10

O DIA EM QUE NOS TORNAMOS PARENTES

Há um momento na vida de todos nós em que viramos parentes. Perdemos nossa capacidade solitária de sermos apenas nós e ganhamos um prefixo. Somos agora pais, mães, avós, avôs e, no meu caso, tia. Foi assim que a Maria Clara, com seus imponentes 47 centímentros começou a mudar nossa rotina. Há poucos meses, tias eram pessoas cercando a meia idade, mas, com sua chegada, passei a pertencer, com orgulho duvidoso, ao seleto grupo. Orgulho? Sim, porque para ela minha irmã, vulgo sua mãe, não passa de uma enorme teta, sempre pronta para satisfazer sua fome.

Todos concordamos obedientes aos cargos que ela nos imputou. Choro agora é privilégio de seus poucos meses - privilégio que utiliza sem moderação, com a certeza secreta que, assim como um móbili de bichinhos, o mundo também gira ao seu redor.

7.6.10

JACARÉ DE ESTIMAÇÃO

Tinha um jacaré de estimação. Mesmo que nunca o tivesse visto, era meu. Adquiri no momento em que ouvi a mãe repugnando sua existência. Eu não o repugnava, pelo contrário; se antes a casa onde morávamos me causava repulsa, ele fora a causa de eu passar a gostar dali.

Na escola, narrava aventuras imaginárias, que não eram mentira, pois lembrava-me delas com detalhes e, inclusive, poderia jurar que realmente tinham acontecido, apesar de saber que não.

Eu não contava à mãe sobre meu animal de estimação, e ela nem ousava perguntar-me o que tinha feito com que eu me tornasse de menina contrariada com a moradia a feliz frequentadora do pátio. Dias gastos buscando com os olhos o novo amigo, sem sucesso. mas eu sabia que ele estava lá, de alguma forma que eu não entendia, como até hoje não entendo o surgimento daquele caminhão de mudanças, sem nenhum aviso ou adeus.