19.7.10

NATUREZA HUMANA

Se eu não tivesse um gato, talvez meu entendimento sobre relacionamentos fosse muito menor. Mas o fato é que o tinha e nunca gostei ou desgostei de sua presença. Quando em silêncio, às vezes, o via encolhido na cadeira ao lado da minha e sentia vontade de afagar aquele pêlo preto e macio. Era apenas fazer menção ao carinho que o gato tornava-se uma tortura. Puxava a mão que via em direção a sua cabeça e, se fugíamos, acompanháva-nos por horas ainda, até entender que fora apenas um carinho esporádico. Perseguia-nos e nos imputava sua enorme carência. Que carregássemos ela como chaga: quem mandou ter um gato?

Da independência dos felinos, nada trazia e, não fosse o formato e o ronronar que ressoava somente ao dirigirmos o olhar para ele, não o diríamos gato. Era sim, talvez carrapato, melhor das hipóteses cachorro, que alguns compartilham assim da carência canina.

Com o tempo, acostumei-me a desistir antes do primeiro afago para evitar o sofrimento posterior. Via o gato, mudava de aposento. Se ele vinha atrás, trancava-me no banheiro e, ao sair, tropeçava, quase sem querer, no bichano. Tornou-se quase medo o que nutria por ele.

Hoje, quando atendo o telefone, ouvindo choro de amigas do outro lado da linha, suplicando conselhos, rabiscando explicações, vontade pura de lhes emprestar o gato. Em uma semana, entenderiam na pele a natureza humana.

12.7.10

PLANO DE FUGA

Se já antes não havia certeza da sanidade mental do pai, agora era certo que esta já não mais existia. Certo dia, um mal estar lhe veio visitar durante o trabalho. Como foi parar no hospital devido a isso, soubemos que o mal estar era um fato, de fato. O pai, que evitava a brancura dos estabelecimentos voltados à saúde o quanto podia, ligou para a mãe informando o ocorrido. Não se sentia bem, uma dor no peito, não foi nada, nada demais. Pediu calma e uma muda de roupas. Era provável que ali passasse a noite, procedimento de rotina.

A mãe saiu do trabalho, correu para casa e trocou o almoço por uma visita ao hospital, munida de muda de roupas, chinelo e um pijama. Para o pai, claro. Quando próxima ao estabelecimento, o toque do celular lhe surge novamente: o pai, perguntando onde estava, que teve alta e iria para casa com ela, que não teve tempo de estacionar o carro. O pai, que lhe esperava do lado de fora do hospital, entrou apressado no veículo e vieram para casa. Não foi nada. Nada demais. Respondia às perguntas sobre o que ocorrera. Queria apenas deitar um pouco para descansar.

Durante o repouso, o telefone de casa toca, a perguntar pelo senhor Flávio Dutra. Ao saber do que se tratava foi quase espanto o que experimentamos: a enfermeira do hospital preocupara-se pois, na hora do remédio, constatou que o paciente havia desaparecido.

A ela, pedimos desculpas. A ele, uma explicação.

5.7.10

HORA DE CHAMAR A SAMU

O pai era um homem de vícios secretos. Já contei, em outro texto, que ele fumava escondido. Mas nunca contei da adoração secreta que nutria por nossa cachorrinha.

Acontece que sempre tivemos animais em casa, mesmo que minha mãe se encarregasse do sumiço de alguns. O pai, apesar de não os maltratar, preferia distância. Quando ia sentar-se ao sofá, sempre junto ao braço direito do móvel, que ficava exatamente em frente à TV, chamava-nos. Tira ele daqui. A frase imutável poderia referir-se à nossa gata ou ao outro cachorro que tínhamos, já falecido. Mas ele ignorava-lhes os nomes e mesmo o sexo. Era sempre apenas ele. E falava quando me virem fazendo carinho em bicho podem chamar a SAMU. O que era a variação de uma frase que usava para quase tudo o que previa nunca fazer. E SAMU, em seu discurso, vinha no feminino mesmo, referindo-se à ambulância do serviço.

Mas quando a Felícia, uma Yorkshire com carisma de líder nacional, chegou a nossa casa, o pai mudou. De vez em quando perguntava-nos, quando ela não estava a vista quase em tom de desconfiança cadê ela? O pronome definindo o sexo corretamente era um indício de mudança que não poderia passar despercebido. A cadela conquistou não apenas sua permanência na casa, permitida pela mãe, quanto o carinho desta, que passou a ser freqüentadora assídua de pet shops, levando a Felícia no colo ou em uma das novas coleiras que ela lhe comprava.

O pai, por sua vez, trazia o carinho pelo animal cada vez mais aparente, mesmo que teimasse em disfarçá-lo. De vez em quando era flagrado sentado ao sofá, no lugar imutável, com a cadela ao lado. E chegou mesmo, esses dias, a perguntar se a bichana não estava com fome, ao ver que carregava um pote de comida na boca.

Esta madrugada, ao acordar, percebi que a Felícia não estava em sua cama. Procurei atrás do sofá, onde, numa atitude contorcionista, conseguia se esconder quando queria sossego; e sob minha cama, um de seus locais prediletos. Mas ela não estava. Uma busca minuciosa apontou seu paradeiro: o quarto de meus pais, entre um e o outro. Não sei se espero mais alguns dias para analisar as novas manifestações de carinho, mas é certo que nos atrasamos na hora de chamar a SAMU.