31.1.11

UMA SEMANA

Sempre vivi aqui
É como se aquela esquina
Pela qual eu passo todas as manhãs
seja a mesma esquina pela qual sempre passei

E quando me sento num banco
Minha história vem lentamente me preenchendo
Me seguindo pelas ruas
Por todas as mesmas vinte quadras que caminho

E às vezes, quando as pernas cansam
eu me lembro ainda
que faz apenas uma semana

24.1.11

A DONNIS

Até onde vai minha memória fui dotada de uma infância relativamente feliz, com boas notas e nenhum trauma. Apesar disso, trago somente duas fortes lembranças da época em que minha idade era descrita com apenas um algarismo: a casa das estrelas, já conhecida de quem me lê; e a Donnis.

Um dia estávamos jantando, não faz muito ou talvez faça, quando fomos interrompidos pelo estampido de nosso telefone residencial, esta relíquia para onde ninguém mais telefona. Quando a mãe atendeu e disse oi, nezinho, eu já sabia.

Explico-me: a Donnis era nossa empregada, contratada enquanto minha mãe me gestava, fazia às vezes ela própria de mãe, em época de pais que trabalhavam muito e só ganhavam o suficiente. Permaneceu conosco, oferecendo-se para me fazer uma torradinha toda minha infância, e, se contarmos idas e vindas, devidas principalmente a sua saúde (incontáveis vezes ausentava-se sob o pretexto de realizar uns insames) , acompanhou também parte de minha adolescência.

Depois disso, telefonava sistematicamente todos os anos, no aniversário de cada um (esquecia apenas o do pai, que ele próprio esqueceria se não lhe lembrássemos). A cada telefonema, uma promessa não concretizada de visita e o pedido: separa umas roupinhas para mim que quando eu for aí eu pego!

Nos primeiros anos eu ainda esperava aquela visita e separava sacolas de roupas que nunca lhe serviriam, mas com o passar do tempo me acostumei a sua ausência, assim como nos acosumamos um dia àquela presença em nossa casa, oferecendo-se para preparar um Nescau ou um bolinho no meio da tarde.

Um ano antes ela havia errado a data do aniversário da mãe e telefonado para parabenizá-la no dia de seu próprio aniversário. Não a culpo, já que havia apenas um dia de diferença entre ambas as datas. Mas nesse ano ela não havia ligado, então ligamos nós, mas estava tudo bem, tudo bem, às voltas com uns insames, nada demais, separa umas roupinhas para mim.

E de repente essa chamada e a mãe dizendo oi, nezinho e eu já sabendo de tudo, porque caso você não saiba Nezinho era o filho dela, e estes verbos não estão no passado por acaso.

17.1.11

TALVEZ NA PRÓXIMA ESQUINA

Não sei se ainda quero este abraço
                                  (sei que ainda quero negá-lo)
Hoje me prendo em jaula
Vou ter que adiar meus medos

Mas eu sei teu rosto
Talvez na próxima esquina

3.1.11

QUANDO SENTIR QUE TEM TUDO

Quando você sentir que tem tudo, apegue-se ao
                                                                      nada
                                                                               desfaça-se feito poeira num aceno
                                  oceânico
                                              (como se tudo fosse assim um fluxo contínuo)

Quando você souber que tem tudo, parta
                                                             e partida seja talvez a única coisa que lhe falta
                                    e a falta seja talvez a única coisa que lhe falte

E essa certeza que carrega sempre sob o braço talvez fique pelo caminho

Quando sentir que tem tudo, engane-se
                                                     porque a vida é desejo.